António Setas
No dia seguinte, o tio Mbala não foi ao mar, descansou. Eu estava em pulgas, não pensava noutra coisa a não ser no barco à vela. Quando ele acabou de descansar pedi-lhe que me explicasse como funciona um barco à vela e ele respondeu-me que primeiro era preciso saber o que era um barco, e que depois se veria. Nesse dia não se passou mais nada. No dia a seguir pegou-me pela mão, levou-me até ao sítio onde estava o ndongo e mostrou-me o que era um barco à vela. Virou-se para mim com um ar de certa vaidade e começou a falar.
«Comprei este barco já lá vão ... não sei, dois ou três anos. Foi ali para os lados do rio Bengo. Naquelas matas há muitas árvores...eu até nem sei o nome, os brancos chamam-lhe mafumeira. É nessas árvores que se faz o barco. Atenção, é preciso escolher bem as madeiras, há as que estão secas, outras não, têm que estar bem secas. Escava-se e faz-se o barco, tem que ser um mestre a fazer. Quando o barco está pronto é lançado ao rio, atravessa-se a barra e chegamos a Luanda pelo mar. Está aqui o barco».
Mostrou-me o ndongo e depois continuou, «Antes de ires para o mar tens que ter pelo menos duas coisas, água para beber e comida. Se contares ficar mais de um dia levas uma bacia com areia e carvão para poderes cozinhar no barco. Metes o carvão em cima da areia da bacia, acendes e podes cozinhar. No tempo do cacimbo não te esqueças do agasalho!».Olhou para mim, severo, e prosseguiu, «Depois, temos os iscos. O mais utilizado entre nós é a sardinha, mas também empregamos o peixe miúdo, o “kabwenya”, que se apanha nas pequenas redes de pesca, sem esquecer o camarão que é muito apreciado para pescar dentro da baía». Fez uma pausa, olhou outra vez para mim, talvez para julgar se valia a pena continuar, mas ao ver os meus olhos muito abertos decidiu que sim, «Para fazer avançar o barco temos o ‘bordão’, está aqui, uma vara com 6 ou 7 metros de comprimento, para ximbicar, quando há pouca água debaixo do barco. Se as águas forem profundas, temos dois tipos de remos, o “afi”, utilizado na popa para orientar o barco, os “jiafi”, como os do branco, que serve para remar sentado. Às vezes, quando o barco é grande, pode-se utilizar um remo especial na proa, o “dilemu”. Também serve para dirigir o barco, mas esse não o tenho aqui. E...olha!, o que te mexe tanto com a cabeça, uma mvela».
Enquanto falava ia mostrando os objectos que mencionava. Estendeu a mvela, pôs no chão a âncora, os paus que serviam de retranca e de mastro, e explicou, «A mvela. Como estás a ver é um pano de algodão. Pode ter três ou quatro lados, este tem três. O mais importante é a dimensão, se for grande demais o barco vira com vento mais forte, se for pequeno o barco não avança como deve ser. È complicado, só um especialista sabe dizer qual é a boa dimensão para cada barco. Como funciona?...Isso é mais simples, liga-se a mvela a este bordão, na parte que vai ficar no alto, e depois ela é içada ao longo do mastro que tem aí uns 5 metros de altura, por um cabo que passa por um ferro, aqui, na extremidade superior do mastro. Para apanhar o vento tens cordões, quando há vento demais dás folga aos cordões, se houver pouco vento, ou se quiseres encher bem a mvela com o vento que houver, puxas ou dás folga, depende. A âncora, essa, serve para fazer parar o barco, e está presa por uma corda com pelo menos uns trinta metros de comprimento Metes a proa do barco virada para o lado de onde vem o vento, levantas os remos, ou baixas a vela se estiveres a velejar, e o barco a certa altura pára. Tens que saber mais ou menos a quantos metros está o fundo. É nesse momento que lanças a âncora. Tem que se lhe diga, depois na prática logo verás».
Pouco percebi, mas como a arte de velejar é de difícil compreensão, ele avisou, «Expliquei-te tudo muito por alto. Ainda nem te falei da fisga, do “muxeiro”, (gancho), da “bangala”, (pau), isso fica para mais tarde. Hoje não vale a pena fazeres esforços para perceber como se navega com a ajuda do vento. Mais vale uma hora no mar do que dez lições de uma hora em terra».
Virou-me as costas e começou a mexer no que havia dentro do barco. Tirou uma caixa, depois tirou outra, tirou novelos de linhas de vários tamanhos, os anzóis, virou-se de novo para mim, ali pespegado de boca aberta sem dizer uma palavra, e disse, «Linhas, anzóis e chumbos. Pelo que se pode fazer com estes materiais se verá quem é bom pescador. Mas isso também fica para mais tarde, quando estiveres no terreno. Por hoje chega».
«Puxa! Parece que está com pressa», pensei. E esse “por hoje chega” caiu-me mal. Quase fiquei com a impressão de estar a incomodar. Mas era só uma impressão. Ao longo do mês o tio Mbala levou-me uma meia dúzia de vezes a pescar na baía Meia dúzia de dias que me ficaram gravados na memória como as armas de um príncipe num anel de brasão.
A minha mãe sofria do ‘‘complexo bakongo’’, sentia-se discriminada pela comunidade piscatória da Samba em que predominavam os mundongo, ambundo como ela dizia. Embora fosse agora ‘‘destacada’’, quer dizer, intermediária privilegiada na compra de pescado às unidades de pesca mais importantes, por cunha de um amigo da vó Júlia, que a tinha introduzido nesse circuito muito fechado e de difícil acesso, reservado a um punhado de felizardos, só para os lados da ilha do Cabo é que ela ganhava sossego. Na Casa Lisboa, na Salga e ao longo das praias da contracosta encontrava-se a miúde com gente da sua terra ligada à faina e, a despeito das facilidades que o Luisão lhe podia dar na Samba e na Corimba, era por essas bandas que ela fazia o negócio. Ia para os quarenta, mas ainda era bonita, esbelta, e além disso tinha as suas letras - entenda-se, letras para o nível do negro de Angola, debaixo da bota do colonizador português -, chegara mesmo a frequentar o 3º ano do Liceu por vontade do seu falecido pai, que desejava que ela fosse uma senhora. Assim educada, queria à viva força que o filho querido também fizesse estudos. E, contas bem feitas, foi ela, só ela, com a ajuda da vó Júlia, quem me roubou o sonho de ser aprendiz e ir para o mar com o tio Mbala. Ainda me lembro como se fosse ontem da conversa com o meu pai, ela a dizer que eu não tinha idade de ir para trabalhar, o menino tem que ir para o liceu, tens masé que dar o dinheiro para a matrícula e para os livros, e mais isto, e mais aquilo... E a resposta do meu pai, «Dinheiro para o Liceu!? Então tu não vês que esse rapaz tem tanto jeito para estudos como um burro para fazer saltos mortais?» Nesse ponto estava eu de acordo com ele, porque a minha vontade era ser aprendiz, mas a minha opinião pesava pouco na balança, pois nem em sonhos me poderia opor à força de persuasão das carícias que a minha mãe lhe fazia. Não só com os olhos, na cama também, porque eu bem ouvia os gritos de alegria que eles davam à noite, altas horas e de madrugada. Não havia volta a dar, tinha mesmo que ir para o liceu e para lá fui andando. Mas, quando podia, dava sempre uma saltada até à Xicala.
Pois é, fui obrigado a ir para o liceu por causa da mãe e da avó, com as manias que elas tinham de educação esmerada, quando o que eu tanto queria era trabalhar com o tio Mbala. Serviu-me esse sacrifício para aprender um pouco de francês com a minha mãe, o que não admira porque ela era bakongo e esse povo fala muito bem francês, e serviu também para ficar a conhecer melhor o meu pai.
O Luisão era um homenzarrão, um metro e noventa, músculos firmes, que ao menos para isso serve o duro trabalho no mar, e cara de amigo de ninguém. Tinha um perfil de foca pendurada pelas orelhas, mãos espalmadas que lhe chegavam às rótulas e podiam muito bem servir de remos, e quando se zangava não se lhe viam os olhos, escondiam-se, lá para trás das olheiras que os encaveiravam. O mais engraçado é que quando não estava zangado até dava gosto vê-lo, uma força da natureza. Pouco se ocupou de mim até ao dia em que eu entrei para o liceu. A partir daí, seringado pela vó Júlia, que tinha a mania de que eu podia ser um grande homem, deu-lhe para se interessar pelos meus estudos. Quando as notícias do liceu eram más, puxava do cacete e dava-me, dava-me até ficar com medo de me ferir. E, como a ostra que se fecha ao sentir a ameaça do predador, fechei-me eu. Deixei de pensar no ndongo do tio Mbala, estudava para não apanhar com o cacete, chegava a casa e ia para o quarto, deitava-me e ficava montes de tempo a pensar em nada até me vir à cabeça o ndongo. E dizia baixinho, «Agora não, deixa-me em paz».
Felizmente, o Luisão só vinha de tempos a tempos, mas nunca falhava aos sábados, muitas vezes com o tio Augusto, o que enxotava as moscas com o bafo. Comíamos debaixo do imbondeiro e o que nunca faltava era o vinho. A vó Júlia falava dos reis do Kongo, o meu pai de futebol, e o tio Augusto dos festejos do Carnaval, que era uma azáfama constante no quartel do Nzumba. A minha mãe não dizia nada. Também me acontecia ir de visita à tia Chiquinha, a outra mulher do meu pai, do Bairro dos Imbondeiros. Mas só ia se ele me pedisse, ou melhor, se me obrigasse a ir. Mostrava-lhe quase sempre má cara, talvez por não ser capaz de esquecer que o liceu me impedia de ir para o mar no ndongo do tio Mbala, e porque ele me batia quando obtinha maus resultados. Respondia-lhe dessa maneira, com as fracas armas que tinha.
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