quinta-feira, 3 de março de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (1). Primeira parte. O muxiluanda


António Setas
Quando a grande kalemba de 1944 levou uma “metade” da ilha de Luanda, o meu pai vivia no Belela e viu-se obrigado a fugir no seu ndongo para não ser levado pelas marés, potentíssimas, que engoliram tudo o que por ali se erguia acima da tona de água. Ao tempo ainda ele não era casado, mas gostava da Chiquinha, uma moça bem-posta daquela zona, que também gostava dele e às vezes lhe comprava todo o peixe que trazia do mar. Eu ainda não tinha nascido, mas segundo o que se dizia à boca cheia muitos anos mais tarde foi uma kalemba incrível, de assustar gregos, desses que se contam nos livros de história e que até ganhavam em valentia aos gigantes e outros monstros da terra, do mar e do ar. É que dessa vez as ondas não eram como de costume, a chegarem suavemente de lado, como que a lambiscar as praias e a engrossá-las, por nelas depositarem muito da areia que traziam lá do sul, desde a barra do Kwanza. Estas apareceram de frente, muito altas e furiosas, a levantarem-se numa ameaça constante atrás das que se quebravam numa roncaria infernal ao chegarem à praia. Foram dias a fio de sofrimento, e o mar só se acalmou depois de ter engolido tudo ou quase tudo quanto os homens tinham levado anos e anos a construir.
No Belela, toda a população que conseguiu escapar à fúria do mar refugiou-se em terra firme, e em outros locais da ilha também muita gente abandonou as suas casas. Os do Mbimbi foram de preferência para a Camuxiba e para o Bairro do Cinquenta na Samba, alguns para o Rangel, outros para o Sambizanga, onde já viviam muitos axiluanda; os do Tundo foram bater à Corimba, ou atravessaram a barra e instalaram-se no Mussulo; uns quantos do Belela foram para o Sambizanga, mas a maior parte dos “ilhéus” rumou para sul e assentou arraiais na Samba Grande. Se fizéssemos um desenho para ilustrar a diáspora axiluanda, contando com os que morreram no mar, seria uma cruz, ou uma espada, com a ponta virada para o sul de Angola!
Os que particularmente nos interessam, os do Belela, seguiram quase todos um senhor de grande prestígio, o Papá dya Kota, pai de um grande número de filhas e de filhos - nessa altura a sua maioria eram casados e, como se fossem fotocópias, iguaizinhos ao pai, cada um deles com bué de rebentos de tenra idade, tão tenra a de alguns que tiveram de ser levados ao colo -, e eram esses filhos, sãos e robustos, que o ajudavam a controlar uma frota de barcos de pesca de notável importância à escala da ilha.

Antes do Belela ter sido levado pelas kalembas, o Papá dya Kota habituara-se a ir pescar em frente de uma praia da Samba Grande, onde os caprichos do mar tinham formado uma espécie de albufeira muito rica em pescado grosso. Por trás da praia, o terreno bastante extenso - à roda dos catorze hectares - estendia-se por trezentos a quatrocentos metros até à estrada da Corimba e corria ao longo dela por quase meio quilómetro. Era um bom sítio, pouco acidentado, virado para o mar, alguns imbondeiros de bom porte a decorá-lo, uma estrada decente à mão de semear e ainda por cima sem ninguém a ocupá-lo, fora uma ou outra manada de bois que por ali pastavam à procura de verdura. Foi nesse terreno, mais tarde conhecido como Bairro dos Imbondeiros, que uma boa parte dos habitantes do Belela se instalaram depois do desastre sofrido, seguindo como um só homem o Papá dya Kota. Além da família do Kota no seu inteiro instalaram-se outras, todas elas de pescadores e da ilha. Na confusão reinante também para lá foi o que viria a ser meu pai, o Luisão, que tinha ndongo e reputação de bom pescador. Protegido pelo Kota, conseguiu arranjar dinheiro para o alambamento e casou-se com a Chiquinha. Pau a pau, metro a metro, a Chiquinha a colaborar, e todos os que podiam a ajudar, construíram casa a tempo para receber um primeiro filho, o Zeca. Depois vieram mais dois, o Xico e o Eli. A minha hora ainda não tinha chegado.
O bairro foi crescendo. Toda essa gente, sem excepção, trabalhava na pesca, ou noutra actividade relacionada com ela, e comungava de um sentimento muito forte de pertença a uma casta diferente da do resto da população de Luanda. Esse juízo vinha de raízes profundas e era avivado e regido por leis próprias, em harmonia com velhas tradições que o Papá dya Kota capitaneava. Com o passar do tempo consolidou-se ao ponto de dar origem a um comportamento comum a todos, que excluía os forasteiros, os “de cima”, como era costume chamar os que não pertenciam a uma das famílias ditas “natas”, isto é, de genuína origem axiluanda. Nenhum desses indivíduos de “fora” poderia em tempo algum assumir um cargo de comando no seio da comunidade, como nenhum deles jamais seria retribuído, para uma determinada tarefa, da mesma maneira que os ‘‘natos’’. É claro que receberia muitíssimo menos! Mas que não haja engano, não é ao Papá dya Kota que se deve a existência desse sentimento de “diferença”, quase tão velho como a história da população ribeirinha de Luanda, só que foi ele, como um Moisés, quem guiou a sua gente. Foi graças a ele que nasceu o Bairro dos Imbondeiros e deve-se em boa parte à sua auréola e autoridade a chegada ao presente das raízes do passado, o que levou a que o significado da palavra Axiluanda ficasse praticamente reduzido a uma definição de etnia.

Por meados dos anos 60 o Papá dya Kota deixou-nos, com obra feita. Paz à sua alma. O grande terreno despovoado dos anos quarenta invadido por famílias suas, sendo apenas admitidas por perto, salvo algumas excepções, outras de raiz “ilhéu”, tinha-se transformado em feudo muxiluanda. Fruto da tradição, e da intransigência do Kota, pouco a pouco tinha ganho força uma lei antiga que pretendia defender a “etnia”. Mulher que fosse muxiluanda devia casar-se com homem de “dentro”, e as raras excepções que vieram confirmar esta regra apenas se deviam a um sensato augúrio de bons benefícios para a família. Os homens, esses, escapavam mais facilmente à lei, mas mesmo que os pais nunca se opusessem abertamente a que um deles se casasse com uma moça “de fora”, o facto consumado era tolerado sem nenhuma alegria e, em todo o caso, nunca a esposa seria tratada como uma “nata”. Neste ou naquele pequeníssimo pormenor haveria sempre uma diferença. E logo vinha a justificação : «Porque os “de fora” são do “mato”, os da ilha são da ilha e não há mal nenhum nisso, há simplesmente uma diferença. Só nós, os da ilha, “pisamos na água do mar” e não podemos viver sem ela, somos “akwa zanga”. Só nós, ao contrário dos outros, nos orgulhamos diante dos próprios portugueses de ser o que somos... Se somos Kaluanda? Sim, mas “puros”. Há séculos que as makas dos elefantes nos desinteressam. Somos os únicos que nunca foram mexidos para o “contrato” (contrato de trabalho salariado obrigatório), e só nós conseguimos fugir ao serviço militar colonial. São os próprios colonos que pedem às autoridades!, este rapaz é filho de pescador, trabalha com o pai, o pai trabalha comigo. E as autoridades arranjam outro para pôr no lugar dele. Somos diferentes».

O funeral do Papá dya Kota, que teve lugar em Luanda, abrilhantado por todas as impressionantes cerimónias de óbito da tradição muxiluanda, foi dos mais grandiosos que houve na história dessa comunidade ribeirinha. Passaram os anos, e ainda hoje quando se fala das suas convicções, das suas façanhas, da sua postura na vida e das anedotas que ilustram a sua passagem pela mãe Terra, os seus descendentes nunca se poupam a discursos e testemunhos que o elevam à categoria de figura mítica, não obstante não ser assim tão distante o seu passamento físico.

Coisa de dois anos antes da morte do Kota, o Luisão, ainda na quarentena, sentiu com desagrado a chegada dos cinquenta, o equador da vida, e anunciou-se grande calmaria na sua vida. Apareceu-lhe então o malvado diabo do meio-dia com as suas caretas, a dar-lhe uma irresistível vontade de se provar a si próprio que ainda era um homem rijo. E, de visita em visita à tia Londa, que vivia na Xicala com o Mabla, também pescador e primo por aliança da Chiquinha, foi construindo com paciência de chinês uma rede de cerco, que olhos menos atentos poderiam interpretar como sendo destinada à tia, mas não, o destino da rede era a sobrinha, a Tonicha, que arvorava do alto dos seus vinte e poucos anos uma perturbante beleza, iluminada por um sorriso que lhe vinha de dentro, capaz de adoçar o Diabo em pessoa. Quando o Luisão ia de visita levava sempre peixe grosso, ou um naco de boa carne, legumes frescos, desfazia-se em sorrisos, oferecia vinho e cerveja à tia, gasosa para a moça. E não perdia uma para lançar elogios e cumprimentos à cozinheira, «Sim senhora, Londucha, está de gritos!», e à Tonicha dava uns toques a derrapar para a carícia. Enquanto isso alternava as miradas, breves e alegres para uma, muito profundas e com lampejos de paixão para a outra. Quando acontecia a tia ausentar-se a Tonicha pedia-lhe coisas e loisas, chocolates, um perfume, uma peça de roupa, e ele não esquecia. Na visita seguinte lá vinha ele com uma prenda para a tia e outra para a moça, e a esclarecer, «Também trouxe isto para a Tonicha porque tinha medo que ela ficasse zangada», e dava-lhe o que ela tinha pedido. Com o tempo, os toques viraram apalpões, animaram-se, e às duas por três, certo dia que a tia se tinha ausentado, as mãos do Luisão subiram por ali acima e acercaram-se dos seios muito altos e firmes da Tonicha. Veio um beijo, e ela deu-se toda a ele. Passados uns seis meses estava grávida. Drama, choro, «Ai Jesus, desgraçaste a minha vida...», o tio Mbala a preparar o cacete para dar um enxerto de porrada ao Luisão, e este a aparecer em sua casa, «Eu assumo! Gosto da Tonicha. Tenho casa para ela». Abraços e lágrimas, mas estas de emoção e alegria. Foi assim que a Tonicha passou a viver no Prenda, numa casa com quarto e sala, quintal, e um imbondeiro no meio do quintal. Alguns meses mais tarde quem veio ao mundo foi eu, o Rui. Tarde demais para guardar lembranças do Papá dya Kota

Imagem: angola-luanda-pitigrili.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário