sexta-feira, 11 de março de 2011

Há outros governantes que são corruptos toda a vida… esses são os imprescindíveis


Gil Gonçalves
O barqueiro Caronte reservava uma barca preparada para singrar no rio Idas. Levava nas ondas os restos das almas dos ousados sábios ou opositores aos generais e outros marciais. Erradicara-se definitivamente qualquer ponto de vista de sabedoria ou oposição. Só a intolerância e proibição de qualquer manifestação eram aceites. Só se permitia, fortalecia o erro histórico antes de qualquer revolução que leva à queda dos regimes ditatoriais.
Os Politburo nasciam sábios, congeniais autorais. Dominavam, fustigavam as epístolas da oposição. Mas os trovadores, exilados internos sem mácula pedravam letras. De chofre aparecia o barqueiro Caronte, esfregava as mãos de avarento, e inquiria se havia almas para as Idas. Se respondiam, por enquanto ainda não, Caronte impacientava-se.
- Não brinquem com a ludologia. A política não é arte de cartomantes. Daí não advém futuro. Da outra Revolução Francesa que há-de vir, enviam-me muitas almas. Sempre foi assim, sempre assim será.
Os Politburo subiam os degraus do poder sem esforço. No altar cultuavam as vastas sobremesas das multidões sem história. Que de mãos estendidas, flácidas, migalhavam o culto da fome. Tudo é composto de corrupção.
- Não há nenhuma revolução que nos vença, que nos convença, ou que nos tire do lugar. Governamos demasiado, porque o tempo só conta enquanto estamos vivos. Governamos mal? Os acólitos aplaudem-nos pela boa governança. Outros povos, especialmente este que dirigimos, os Jingola, envolvem-se, deixam-se levar na felicidade que lhes prometemos nos discursos de fim de ano e nos milhões de falsas promessas eleitorais. Antes viviam na extrema escravidão, hoje estão libertos. É verdade que existem alguns constrangimentos, mas o sorvedouro dos milhares de leis decretadas solucionarão a emancipação do nosso povo. Finalmente a miséria acabará, atingiremos, bateremos as metas dos recordes do desenvolvimento.
- É?! Acontece que fiz um grande investimento na compra de duas mil barcas, e muitos barqueiros para as conduzirem que correm o risco de perder o emprego. Não estão a cumprir o contrato, exijo indemnização. Arranjem aí umas epidemias, qualquer coisa… não se sobrevive sem cadáveres.
- Velho Caronte, não escorregue, cadáveres não faltarão. Fique calmo que brevemente tombarão outra vez mil por dia.
- Não acredito em tal maldição! Vão fazer outra revolução?!
- Nem tanto a norte… vamos fazer outra guerra mais devastadora… com muitos campos de concentração nazis.
- Pendo dessa garantia. Importa-me que cumpram as normas contratuais.
- É verdade que demasiamos a honrar os nossos compromissos, mas quando os lesados nos pressionam, vasculhamos a papelada e accionamos o pagamento. Só trabalhamos debaixo de pressão. Somos como uma locomotiva a vapor.
- É!.. São bons crentes, confiam na divindade que rege o Universo. Naquele que é a origem do cadinho, que nos criou, nos deu origem. Sois os Politburo que aceitam um só deus. Seguis as doutrinas do feitiço. Tudo é decidido e explicado pelo vosso feitiço. Concedo-vos prazo de mais trinta anos para acabarem a contenda. Depois exijo que façais eleições senão…
- Senão o quê?!
- Altercarei a dívida com juros muito pesados. O vosso corpo será mais pesado que o chumbo, e não o podereis suportar.
- E perdidos nos encontraremos bem desarrumados, sempre descontrolados.
Os Jingola acessavam uma emissão de rádio, onde amiúde proclamavam, desabafavam vicissitudes incomensuráveis. Apesar dos esforçados Politburo para a silenciar, ela resistia bravamente. Era o rumo dos sem rumo, assim divinizavam a Rádio Oráculo. Alguns casuístas comparavam-na a Asterix o Minigaulês, que resistia arrumado, aprumado num cantinho sombreado da mafumeira. Os Politburo rabulavam que a Rádio Oráculo era o seu calcanhar de Asterix. Os circuitos telefónicos mais íntimos da governação, paladinavam que era o calcanhar da função real.
Jingola propagandeava a epidemia de cólera, que militava com muitos aderentes para o interior do reino. Como praga ratada sem navios mercantes. Frechei-me com grande constrangimento: ninguém ousou explicar que a principal causa da cólera… é a fome. A epidemia cadastrou ao infinito de Jingola. A Rádio Oráculo solicitou anuência para implementar o seu feixe hertziano a todos os ouvidos do reino, para que as populações se informassem, acautelassem, sanassem a epidemia. Os Politburo liminarmente recusaram. Cartaram, selaram, pergaminharam para a Rádio Oráculo.
Reverendíssimas Excelências da Rádio Oráculo:
Havemos um contrato com o barqueiro Caronte. A epidemia da cólera faz as vítimas suficientes, as almas que o barqueiro necessita a contento. Sentimo-nos felizardos. Se o sinal da vossa fé se digladiasse pela rádio e por todo o reino se espalhasse, não cairiam vítimas da cólera. Contamo-nos peremptórios firmados, e esse vosso pretenso vento é… não aceite.
Alvejamos a certa teologia do querem ir mais longe, para além das redondezas, dos limites de Delfos. As distâncias curtas por vezes tornam-se longas.
Permitimos que funcionem devido à frequência democrática que nos foi imposta. Encetámo-la no compêndio das contrariedades mas preferimos, prosseguimos com convicção no estalinismo.
Estendemos-lhes um dedo, agora querem a mão, depois todo o corpo.
Para convencer que somos democratas, anunciámos que se realizariam eleições. Notem bem: que se realizariam… em qualquer momento, em qualquer época. Tudo depende da nossa íntima vontade. Não é a claridade de qualquer oráculo que nos leva ao cume solar, datar eleições. Uma coisa é incerta: o principio da incerteza eleitoral.
Os nossos insignes marinheiros vigiam atentamente as proas do vosso ecletismo. Pretendem entreabrir a janela da noite escura, para a missa de manhã. Fazer muita luz para jorrar nos espíritos. Com tanta vela por aí à disposição. Estamos à vela.
Abundantes Saudações Revolucionárias.
Jingola, Frimário, Ano II.
Ano da Vida Incerta.
Resposta da Rádio Oráculo:
Depois de consultado, o Oráculo revelou-nos:
Parafraseando o perfume opiado, marxista de Bertolt Brecht, condizemos:
Há governantes que são corruptos num dia, e são bons.
Há outros governantes que são corruptos durante um ano, e são melhores.
Há outros governantes que são corruptos durante muitos anos, e são muito bons.
Mas, há outros governantes que são corruptos toda a vida… esses são os imprescindíveis.
Mutam-se os climas das políticas, mudam-se as tempestades. Tudo é composto de ciclones.
Injectadas saudações.
O Directório.
Jingola, 9 Termidor.
Ano da emissão da nossa Rádio a todo o Reino.

A ponte projectava magnitude louvável. Debaixo, uma multidão de pilares humanos olhava com altitude. No tabuleiro em cima, um jovem mimicava, distendia continuamente as mãos. Chegavam, juntavam-se mais olhares. Davam-se alvitres e palpites. Explicar porquê, ninguém conseguia, sabia. Alguém mais palpiteiro azedava que ele era maluco, mais um drogado. Um alvitreiro tinha a certeza que era um actor que filmava uma cena para a telenovela. Ele desacelerou os acenos, elevou as mãos ao céu, e num sacerdócio pregou a vaidade da verdade:
- Fui um grande lutador, sempre até ao último momento. Não engulo esta vida de miséria, de fome. Não consigo estudar, não há emprego. Os Politburo desvivem-nos, cortam-nos os anseios, as asas, os casebres… ó singular desesperança! O barqueiro Caronte está à minha espera. Não terei ninguém para me colocar as moedas nos olhos.
Depois esticou bem a cabeça e os braços, elevou-os, falou para as alturas.
- Ó vós que viveis nos vossos palácios cercados pelos dias e noites, que navegais nos só vossos campos petrolíferos, vigiados por milhares de guerreiros que vos protegem dos medos. Parto para o Jango… lá nos reuniremos… e rolaremos nas suas ondas de fogo.
A quantia humana parecia um comício, abelhas numa colmeia. Os comentadores do quotidiano desfraldam notícias. Esta função é-lhes sumariamente atribuída. Tem o direito de não se calarem e afrontarem o generalado.
- Ih, ih, essa telenovela é vinculada demais, não vou deixar que arrefeça.
- Isso é propaganda, Carnaval eleitoral dos Politburo.
- O nosso eterno Politburo não precisa disso, já ganhou as eleições.
O jovem alterou a postura, silenciou para a multidão. Afagou com as mãos a dizer adeus. Depois colou-as no coração, e a pique foi pela aceleração da gravidade afundar-se no abismo eterno, na salvação dos suicidas. No solo um pequeno regato de sangue vermelhava a terra, que colidiu, juntou-se ao lixo, ao juramento dos imortais que prometeram que seríamos livres. Que jamais faltariam jasmins.
A colecção humana desagregou-se. Alguns intrigados curiosos não arredaram teimosos. Ninguém atentava para actos suicidas, andavam na moda.
- Que odisseia Mentor, que imagens espelhadas tão desiguais.
- Verás muito mais. Olha, a morgue principal está cheia de cadáveres desconhecidos. Já apregoam que Caronte, o barqueiro dos Infernos está midas. Os falsos médicos que os Poltburo contrataram, dão grande apoio a Caronte.

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