sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (5)


ANTÓNIO SETAS

O destino histórico dos titulares do vunga de sudoeste no Estado munjumbo, fornece outro paralelo com a história dos Tumundongo, uma vez que, tal com o ndala do Libolo entre os Mbondo, a província Ovimbundu do mujumbo sobreviveu como reino independente muito tempo depois do Estado progenitor, o Songo, ter desaparecido. O Estado munjumbo do sudoeste cobria as encostas setentrionais do planalto de Benguela, onde os reis do Bié no século XIX preservavam o nome de Munjumbo wa Tembo como fundador da sua dinastia. Eis a versão escrita, um tanto confusa e a manear com grande circunspecção da tradição Tumundongo do séc. XVII sobre a chegada dos Lunda à região Songo.

Um bando de guerreiros, unidos sob a chefia de um líder erradamente designado “Zimbo” (mais provavelmente uma derivação distorcida do título munjumbo) tinha alcançado uma região não identificada do interior. Cada um dos subchefes que o acompanhava seguiu então o seu próprio caminho e estabeleceu-se entre os diversos habitantes daquela região. Os chefes (subchefes) chamados “Ndumba” e “Kandonga” estabeleceram-se em regiões não identificadas, um outro, chamado Ndonje, casado com Musasa, instalou-se num planalto a sul do Kwanza, e o velho rei “Zimbo” por fim morreu, deixando os seus antigos vassalos nas suas respectivas terras, onde ainda governavam como reis independentes nos meados do séc. XVII.



Análise:
1) Todos os pormenores desta tradição relacionam estes acontecimentos com a chegada do kinguri no seio dos Songo e a subsequente dispersão do grupo original de migrantes.
2) O nome da esposa de Ndonje, Musasa, designava provavelmente as matrilinhagens de (Lucaze na) Mwazaza, grupos de filiação ainda designados pelas modernas genealogias com tendo relação com os títulos Lunda, um dos quais era o ndonje.
3) Os outros dois títulos referidos(no séc. XVII), Ndumba (a Tembo dya Mbumba a Mbulu) e (Kabuku) ka Ndongo “Kandonga” aparecem noutras fontes como companheiros do kinguri e do mujumbo. Mais uma referência às linhagens Lunda.
4) O reino original do “Zimbo” localizava-se algures no desconhecido planalto a sul do Kwanza, confirmando a separação do munjimbo do kinguri e a sua expansão para o sul.

Uma tradição do Bié conta a história do bando de Kinguri, que a dada altura atingiu o rio Luhando depois de muitos anos de lutas em que prevaleciam costumes de canibalismo generalizado (as “leis kesila”) que os levava sempre a moverem-se em busca de novas populações que lhes pudessem servir de alimento (!) e desse modo acalmar os espíritos ancestrais. A linha de enredo dessa narrativa – guerras intestinas, dominação cruel do líder, movimentação para sudoeste e gradual fragmentação do grupo, de que resultou o estabelecimento de reis no Bié e noutras partes do planalto dos Ovimbundu -, descreve claramente a dispersão dos títulos Lunda na região do alto Songo e a descendência evidente do munjumbo dos Bienos entre os oponentes do kinguri, cuja crueldade amplamente notificada justificava o seu abandono desse título Lunda. Essa ruptura nasce a partir do momento em que os membros do grupo começam a se virar uns contra os outros para satisfazer as suas necessidades de carne humana. Segue-se um conflito interno, seguido de outros, e finalmente alguns líderes decidiram abandonar os seus costumes canibais e fundaram uma sociedade secreta. Porém, o líder do bando original recusou e seguiram-se lutas sangrentas entre os membros do grupo até que, enfim, alguns líderes abandonaram os seus rivais guerreiros, gradualmente dispersaram-se e estabeleceram-se, governando as populações que ali viviam uma vida sedentária. (O termo “empacasseiro”, usado nesta tradição escrita pode ser equiparado à versão kibinda Lunda. Metaforicamente a selvajaria do kinguri fazia que ele fosse comparado a uma besta feroz e sanguinária, sobrenatural, enquanto o mujumbo, como kibinda que era (os “empacasseiros” da versão escrita) tinha poderes especiais para abater animais daquele tipo.


Resumo:
Títulos estrangeiros Lunda entram na região ocupada pelos Songo. Esses títulos não têm qualquer ligação particular com quaisquer tipos de linhagem e são as linhagens assediadas dos Songo que se apropriam das posições Lunda, fazendo delas pelo menos o núcleo de três pequenos reinos, através de processos que se assemelham aos da conversão que os Mbondo fizeram dos mavunga do Libolo, igualmente sem linhagens. Pelo menos uma das posições Lunda expandiu-se até formar um Estado importante, o do Munjumbo (a Kafuxi /Tembo/Kalunga, etc.), através da concessão de posições vunga, baseadas na faca mágica dos Ovimbundu, o mwela. Em todo o caso, prevalece a tendência constante para uma fragmentação do kinguri, começada muito tempo atrás quando ele ainda se movia nas distantes terras orientais dos Cokwe. A propensão para os títulos Lunda regressarem a uma existência sedentária, denuncia o facto de o bando sem linhagens não oferecer condições e base para exercer um efectivo domínio constante e duradouro. A sua experiência entre os Songo pressagiava, assim, muitas das mudanças que afectariam mais tarde posições correlacionadas a norte do rio Kwanza, no séc. XVII.

Origens do Kilombo

Os titulares Lunda que subsistiram procuraram uma solução para paliar a tendência galopante para a desunião que os caracterizava, adoptando uma associação guerreira dos Ovimbundu conhecida por kilombo. O kilombo fornecia a esses titulares Lunda o que eles não tinham, ou seja, uma estrutura firme, capaz de unir grande número de estranhos e uma disciplina militar que lhes permitia vencer os grandes reinos que bloqueavam os seus movimentos. Na sua fase de maturidade, o kilombo consistia numa mistura de títulos perpétuos Lunda, de posições mavunga originadas entre os Ovimbundo, e dum culto guerreiro desenvolvido algures em terras do kulembe.
Das origens e, sobretudo, das metamorfoses por que passou o kilombo pouco ou nada se sabe, à parte que amadureceu primeiro como um complemento dos reis kulembe, a sul do Kwanza, e que representou uma forma evoluída de uma das estruturas não linhageiras, a que Miller deu o nome de instituições transversais. O significado original primário da palavra designava uma associação de varões, aberta a qualquer um sem ter em conta a pertença a linhagens, na qual os membros se submetiam a impressionantes rituais de iniciação que os afastavam do seio protector do seu grupo de filiação natal, e unia fortemente os iniciados entre si, como guerreiros num regimento de super-homens, tornados invulneráveis às armas dos seus inimigos. Essa combinação de instituições dos Ovimbundu e dos Lwena/Cokwe, forjada provavelmente durante a passagem dos bandos do kinguri através do Itengo e do Mona Kimbundu (onde foram altamente influenciados pelos costumes Cokwe) beneficiaram do contributo dos Ovimbundu que encontraram a sul do Kwanza, sob forma de uma antiga versão dos campos de circuncisão, que actualmente se encontram por toda a Angola central e Ocidental, entre os Tumundongo e os Cokwe, assim como entre alguns Ovimbundu. As tradições orais dos Tumundongo do sec. XVII registaram a formação do kilombo a partir de instituições características dos Cokwe e dos Ovimbundu, contando a história de “Temba Andumba”, rainha legendária, da qual se dizia ter fundado um grande reino com base num culto, designado “execrável seita” por missionários escandalizados, o qual os europeus contemporâneos designavam erroneamente “Jagas”. E o kilombo, “leis dos Jagas”. Segundo elas (as tradições), os ritos kilombo tinham tido a sua origem algures no leste e tinham aparecido com “Zimbo” (ºmujumbo), Ndonje e os outros, algures ao longo do curso superior do rio Kwanza.
Imagem: diamang.com

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