segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (1)


ANTÓNIO SETAS

Ponto prévio
Parte segunda, da simplificação. Recorrer a uma linguagem do dia-a-dia como ajuda a uma compreensão aprofundada da “viagem” dos chefes detentores do título “kinguri”, no fundo uma das mais espantosas provas do absurdo que a nossa existência encerra, enquanto seres criados à imagem de Deus.
Estes textos foram publicados no semanário Folha 8, a cuja direcção e a mais ninguém devo a oportunidade de ter podido divulgá-los, para benefício, creio, do conhecimento da própria identidade angolana de origem banto.

Nos seus primórdios, a história política dos Lunda é a de um certo número de “chefes” de linhagens, relativamente independentes, que ocupavam distintos pequenos territórios junto do rio Kalanyi, e que, em caso de necessidade, se uniam sob a autoridade de um único “chefe”. Nessa época o “reino” Lunda pouco mais era do que um conjunto de aldeias baseadas nas linhagens.
As genealogias tradicionais remontam ao séc. XV e revelam a existência de um único título sénior, que os Lunda colocam acima de várias posições com ele relacionadas, mas subordinadas. A esse título sénior foram dados vários nomes, sendo Yala Mwaku o mais frequentemente mencionado. E tanto as hesitações como a incerteza que pesam sobre ele, denotam que a sua importância era pouca para os detentores dos títulos “filhos” que o adoptaram e preservaram as suas tradições: kinguri, kinyama e lueji.
Ora precisamente, a tradição faz menção de uma rotura que teria havido a determinada altura na estrutura do sistema político baseado no yala mwaku (caixa pequena por se referir ao título) e estaria na origem de um Estado mais centralizado chefiado por representantes da posição lueji. Eis o que diz a narrativa em questão:
«Certo dia, Kinguri e Kinyama, filhos de Yala Mwaku, o rei Lunga, (aqui caixa grande por se referir a personagens da narrativa da tradição oral)), chegaram a casa ao cair da noite depois de terem passado a tarde a beber vinho de palma. O pai estava sentado no pátio a tecer uma esteira como as que se usam para dormir, e ao seu lado tinha posto uma bacia com água na qual ele mergulhava as fibras de ráfia para as amolecer antes de as empregar na tiragem que estava a fazer. Os dois rapazes, talvez porque se encontrassem em estado de embriaguez, confundiram a água suja da bacia com vinho de palma e pediram ao pai que lhes desse de beber. Quando o pai negou, e lhes fez ver que não era vinho de palma mas água suja, os filhos zangaram-se e bateram-lhe tão violentamente que ele caiu mortalmente ferido. Nesse momento acorreu Lueji, ainda a tempo de ouvir da boca do pai os seus últimos desejos. Este, como recompensa da sua lealdade, legava-lhe por herança a posse do trono, castigando pela mesma ocasião a felonia dos seus filhos, ao lhes negar o exercício do poder a que tinham direito».
Interpretação deste fragmento de narrativa tradicional Lunda:
1)Os portadores dos títulos kinguri e kinyama (títulos juniores)envolveram-se em hostilidades contra o yala mwaku (título sénior), ou contra a sua linhagem, a quem queriam tirar o poder
2)O vinho de palma, segundo Jan Vansina, é assimilado na simbologia Lunda aos varões e ao poder político.
3)Ressalta claramente que o yala mwaku foi vencido, ou seja, que os seus inimigos lhe destruíram as insígnias de autoridade e eliminaram a estrutura política à qual tinha pertencido.
4)Se o yala mwaku tivesse qualquer conexão directa com os Luba, como algumas tradições indicam, a sua desfeita também poderia significar uma revolta vencedora das linhagens Lunda ao encontro das estruturas políticas Luba.
O final deste episódio revela de facto uma vitória falsa, pois se é verdade que Kinguri e Kinyama derrotaram o pai, de nada lhes serviu a vitória com a chegada de Lueji. Eles perseguiam uma miragem ao confundirem água com vinho de palma, e a irmã tirou todo o lucro da luta que eles tinham desencadeado, que levou a que a linhagem lueji passasse a ser a principal, aquela que dominava todas as outras num novo e mais centralizado Estado, em detrimento das pretensões de kinguri e kinyama, que acabaram por ser eliminados mais tarde pelos chefes tubungu da nova confederação de linhagens assentes no lueji.
Num primeiro tempo, logo a seguir à morte de Yala Mwaku, Kinguri coabitou certamente num ambiente de conflito latente com Kinyama e Lueji. E esta, escolhida para subir ao trono, passou naturalmente a temer um possível acto de vingança por parte de Kinguri e procurou apoios. Eis o que relata a tradição oral:

«Um dia, Lueji foi até ao rio Kalanyi onde encontrou um grupo de caçadores acampados na floresta. O chefe do grupo era um nobre Luba conhecido entre os Cokwe e os Lunda pelo nome de Cibinda Ilunga. Ao reparar que esses caçadores tinham falta de sal para a carne dos animais que tinham abatido, Lueji propôs-se para lhes fornecer todo o sal de que necessitassem. Seguiu-se uma longa conversa, no fim da qual Lueji convidou Cibinda a permanecer no seu reino. Este aceitou a proposta, os dois apaixonaram-se um pelo outro, e acabaram por se casar com o consentimento dos mais velhos dos dois reinos. Depois do casamento, Lueji entregou a Cibinda Ilunga o seu lukano que lhe permitia governar os Lunda no seu lugar».


Isto quer dizer que o “casamento” de Cibinda Ilungu com Lueji reitera a união de um título político dos Luba, representado como masculino, com as linhagens detentoras do título lueji, representado como feminino. Por outro lado, e pela mesma ocasião, novas ideias e instituições dos Luba difundiram-se entre os Lunda depois desta união, como, por exemplo, técnicas mais avançadas de metalurgia até ai ignoradas, associadas à sociedade de caçadores profissionais kibinda, representada por Cibinda,.
Em todo o caso, sabe-se que com Cibinda Ilungu chegaram à Lunda várias e importantes inovações, todas elas relacionadas com técnicas aperfeiçoadas do trabalho do ferro: o kapokolo, a adaga mágica,; os yitumbu (sing. kitumbu), arcos especiais, mágicos; a cimbwiya, a machadinha que ainda hoje se mantém como importante símbolo de poder político entre os Cokwe. Armas de ferro, que impunham respeito.
Porém, o perigo do kinguri permanecia latente, e apesar de ele ter sido vencido continuava a ameaçar o poder lueji, eram pois bem-vindas todas as ajudas. A figura de Cibinda representa a primeira, na medida em que «a aceitação pelos Lunda das inovações representadas por Cibinga Ilunda, com ou sem intervenção militar directa por parte dos exércitos Luba, assinala uma mudança importante nas atitudes dos Lunda. Eles começaram a abandonar a orgulhosa independência que anteriormente tinha caracterizado as relações entre as linhagens e começaram a avançar no sentido das instituições sociais e políticas mais centralizadas do posterior império Lunda». Até que um dia, Kinguri teve mesmo que partir, ao sentir que não poderia jamais retomar o poder político. Mais uma vez a tradição oral alude ao que se teria passado (tradição Mbangala):

Imagem: oikabumbh.ning.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário