quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (4)


ANTÓNIO SETAS

O kilombo dos Mbangala

Na sua avançada para oeste, o kinguri confrontou-se pela primeira vez depois da sua saída da Lunda com reinos vastos e centralizados, tais como o do ngola a kiluange e o do Libolo junto ao alto Kwanza. Igualmente presente naquela região estava uma sociedade iniciática masculina dos Ovimbundo, chamada kilombo, uma das numerosas estruturas sociais ditas “instituições transversais”. Sob a pressão dos grandes Estados a oeste, os titulares Lunda fundiram-se com o kilombo em algum momento do séc. XVI, para constituir poderosos bandos de guerreiros de grande mobilidade, conhecidos por Imbangala, que se espalharam pela região dos Tumundongo depois de 1610 e acabaram por se estabelecer e fundar o que por volta de 1650 constituía os principais poderes políticos Tumundongo da região: Kalandula, Kabuku ka Ndonga, Matamba, Holo, Kasanje, Mwa (mwa) Ndonje, e outros.
Os detentores do título kinguri estabeleceram um pequeno reino entre as linhagens segmentares de Mbumba Mbulu (Songo) que viviam imediatamente a sudeste das fronteiras do poderoso Estado do Libolo, no apogeu dos reis hango nessa altura (Séc. XVI). As linhagens que habitavam aquela região reclamavam-se de uma antepassada comum chamada Manyungo wa Mbelenge, descendente de Tembo a Mbumba. Um “casamento” de tipo habitual entre Mbelenge e Hango mostra que os reis do Libolo tinham conquistado estas linhagens Songo antes da chegada do kinguri. Um segundo “casamento”, desta vez com o kinguri, representa o estabelecimento do título Lunda entre as linhagens do que era ao tempo o Libolo Oriental.
Figuras femininas que representam as linhagens Songo da região mostram sinais de “casamento” com o kinguri. Uma delas, Kahanda, deixou três descendentes, Kakende, Muxima e Kunga, como testemunho de um anterior reino Songo do kinguri. Para Kakende e Muxinda não se identificaram representantes modernos por ser difícil a reconstituição das histórias dos títulos Songo, mas, aparentemente, Kunga tinha sido um dos mais antigos chefes Libolo estabelecido entre os Songo do baixo Luhando, onde ele governou linhagens ligadas a Kavunge ka Tembo, um título relacionado com o reino do Libolo. A associação destas linhagens com o Libolo, assim como a localização de Kunga perto do posto avançado de Mbola na Kasaxe no rio Kwanza, mostram que o kinguri veio substituir o domínio dos reis hango, quando essas linhagens vieram fixar-se nestas regiões, absorvendo o título mais antigo Kunga, de acordo com os métodos de alteração de nomes empregados na expansão de Estados, como os de ngola a kiluange ou do Mbondo.
Antes de terem entrado em contacto com os reino do Libolo os emigrantes Lunda portadores do kinguri não tinham encontrado Estado suficientemente forte para se opor à sua progressão. Mas o Libolo opôs-lhe séria resistência, e nessa altura, assediados que estavam pelos Lubas a leste, encontraram-se de repente encurralados, em virtude desta resistência do Libolo a oeste, o que levou à saída de elementos menos fiéis do grupo para norte e para sul, e mais tarde, como veremos, à eclosão de rebeliões na pequena parte do grupo que restou.
As dificuldades históricas encontradas pelo kinguri na sua luta para se sobrepor aos títulos vigentes no Libolo de além-Kwanza, foi atribuída ao uso de inadequados símbolos mágicos de autoridade (que ele tinha aprendido dos Luba, com os apetrechos já referidos atrás, o kapokolo, o yitumba e a cimbuyia), tal qual referem algumas tradições Lunda.

Kinguri, ao ver que não podia vencer os chefes do Libolo, enviou um dos seus companheiros, Ndonje, que fosse à Lunda e regressasse com uma das insígnias dos chefes tubungu, o tambor ngoma ya mukamba . O kinguri, aparentemente, delegou esta missão ao ndonje por ser ele o responsável pela conservação das insígnias do kinguri, uma honra que lhe fora dada em retribuição da sua ajuda na construção da ponte de madeira de muyombo sobre o Kasai.

Análise:

1) Denuncia-se com esse pedido a crescente desilusão do kinguri a respeito dos símbolos do poder Luba, obtidos de Cibinda Ilunga, associada a uma tentativa para restaurar as antigas insígnias de autoridade Lunda.
2) O facto de o ndonje estar associado à madeira de muyombo, também um símbolo de solidariedade de linhagem (ao invés da magia Luba, dissociada das linhagens), indica que o kinguri se tenha fixado por um certo tempo entre os Songo como um Estado normal baseado nas linhagens e a concessão de títulos que ali fez contrasta com as posições a leste do Kwango, onde as linhagens tinham desaparecido.

Mas a partida do ndonje não levou à pretendida revitalização do kinguri. Este fixou-se entre os Songo, enquanto o ndonje, pouco preocupado em ir buscar o ngoma ya mukamba, se estabeleceu entre os Minungu, um povo que parece ter formado um subgrupo de linhagens Cokwe, com a posição de mwa ndonje, permanecendo até tempos modernos como título de um importante rei Minungu, e outro titular Lunda partia para sul, o munjumbo, cujo nome completo, Munjumbo wa Ngamba ou Munjumbo wa Konde, indica a sua origem como um título sénior dos tubungu Lunda, ou seja, um irmão ou um tio do kinguri. Esta posição tinha abandonado a Lunda com o kinguri, mas separou-se dele no Songo, para formar pelo menos dois Estados importantes, um entre os Songo (a norte do Luhando, ao longo do curso superior do Lui – cujos herdeiros do Bié eram conhecidos por “Kangombe”) e, mais tarde, um outro no planalto dos Ovimbundu.

Esse Estado Songo expandiu-se desde então para sudoeste ao longo das fronteiras do Libolo e desenvolveu um centro secundário na área do planalto de Benguela, nessa época dominada pelo kulembe. E esses descendentes ovimbundu, do mesmo modo que os do Songo( que viviam em volta do rio Mwiji, um afluente do alto Luhando), relembram que Munjumbo tinha vindo do norte, ou seja, do baixo Luhando, e dali tinham ido para as montanhas ditas de “Nzambi na Ngombe”,(“do Grande Espírito e do gado”), o que muito provavelmente se refere ao planalto dos Ovimbundu.
Além disso, o aparecimento desses Estados munjumbo forneceu mais um exemplo de adopção pelos Tumundongo de títulos mavunga, de que os Munjumbo se serviam para as suas proezas mágicas, assim como refere a tradição:

Munjumbo conquistou os Songo do médio Kwanza com a ajuda de uma faca ou machadinha mágica chamada mwela. O mwela tinha a capacidade de sair voando da sua bainha e subjugar tudo o que resistisse aos desejos do seu dono, gritando com uma voz humana enquanto viajava pelas terras bravias, perseguindo os inimigos do seu senhor. No final de todas essa lutas, porém, a faca virou-se contra Munjumbo e matou-o. Os descendentes de Munjumbo, na sua própria linhagem, herdaram a faca e guardaram-na para sempre.



Análise:
1) O termo de língua Umbundu para designar a faca, mwele, correspondente a mukwale do Kimbundu, faca, que nessa língua ainda é designada por poko ou mbele. Em Kasanje, a machadinha chamava-se kimbuya e era diferente, suspeitando-se que ela terá vindo de origens não Tumundongo. De qualquer forma as duas palavras kimbuya e mwele são de origem da região Ovimbundu e designam a mesma arma, a catana.
2) O mwele ou mukwale, era por toda a parte usado como insígnia de autoridade nomeada e não era portador de qualquer mandato permanente transmissível por herança.
3) A faca virou-se contra Munjumbo e matou-o, designa o carácter efémero do seu poder, e a vitória do vunga do sudoeste sobre ela. Os historiadores Mbangala fazem menção de vagas ligações entre o munjumbo e o “Bailundo”, e todas estas vagas conexões levam a considerar que o munjumbo se expandiu pela apropriação de títulos vunga (intransmissíveis) dos seus vizinho de sudoeste.
4) A passagem da faca para os descendentes de Munjumbo, ou seja, dos herdeiros dentro da linhagem do munjumbo, e não para um outro título político, significa que as linhagens Songo reivindicaram formalmente aquela posição. Assim, o mujumbo original ganhou o estatuto de uma posição local Songo e mudou de nome, para marcar a perda dos seus laços com as outra posições Lunda.
Imagem: tamboresdosmontes.blogspot.com

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