sábado, 4 de dezembro de 2010

Maria Guiomar, 18 meses depois, teve coragem. Juíza desmantelou mentira da DNIC libertando 13 inocentes


Em Angola, nos dias que correm, observa-se uma série de desencontros entre a realidade e os anseios da população. Esse afastamento deve-se a muita coisa junta, às mentiras reiteradas de governantes, a erros crassos de governação, à conjuntura internacional, ao arrastar da crise económica mundial, aos roubos no BNA, às ameaças de morte dirigidas a jornalistas e activistas cívicos, e também ao aumento de preços (da gasolina, por exemplo), à extinção do Roque Santeiro, à fome, aos mortos por causa da chuva, ao relento depois da casa ter sido destruídas, enfim, à miséria do nosso país, um das maiores economias de África e das mais dinâmicas do mundo, ao que se juntou aqui há umas semanas atrás, a cereja no cima deste bolo estragado do MPLA, saída da boca do seu porta-voz, Rui Falcão, que veio a público tentar sacudir a água do capote do seu partido e transferir todas as responsabilidades pelo estado desastroso da nossa sociedade para a funesta existência da UNITA (só existência, porque questão de acção política de oposição ao regime vamos parar muito perto).

Sílvio Van-Dúnem & Arlindo Santana*

Perante este cenário assustador, o F8 previu e preveniu a população contra o perigo de se ter despoletado assim o início de uma verdadeira caça às bruxas, o que se veio a confirmar na prática, que o digam o Jojó, o padre Congo e vários dirigentes da UNITA que foram molestados por agentes da autoridade e pessoas anónimas manietadas por entidades ligadas ao regime. Ora, o caso que vamos em seguida abordar insere-se, como mão numa luva, na “caça às bruxas” que o nosso bissemanário tinha previsto.
Em finais de 2009 foram presos treze indivíduos oriundos dos extractos mais baixos da sociedade, acusados de crimes de sabotagem e fogo posto, na zona de Viana.
Estes jovens, autóctones pobres, não se conheciam e o mais caricato é que o denominado chefe, o Bulay, é sapateiro vive numa tenda rota, no bairro Kapalanga, numa palavra, não tem onde cair morto. No entanto a DNIC, após severas sessões de porrada, apresentou-o como chefe duma terrível quadrilha, que queimava carros, camiões e armazéns em Viana e arredores, pagando aos seus “soldados”, por cada acção, o equivalente de 8 a 12 mil kwanzas.
É uma verdadeira estória da carochinha, mas o público, através dos meios de comunicação social público, foi forçado a consumir essa verdadeira mentira, segundo a qual a polícia tinha conseguido prender os incendiários. E mais disseram, para florear e valorizar a sua versão, que os mesmos estavam “ligados e a mando do partido UNITA”. Era o estrugido dum caldo a saber a batota policial.
Assim, durante um ano e 8 meses, definharam nas masmorras fedorentas das cadeias de Luanda 13 jovens, apanhados em vários bairros da capital. Todos eles exerciam as mais modestas profissões, como taxistas, lavadores de carros, no Benfica e Morro Bento e vendedores de mercado em Luanda Sul, como se vê todos a viver e trabalhar distantes e sem qualquer conhecimento uns dos outros.
Mas o grande rosário é ainda a forma como a polícia tomou conhecimento da alegada participação. Primeiro diz o superintendente David Eduardo Filipe, também conhecido por DVD, que “uma senhora teria ouvido de uns jovens serem eles os autores da queima das viaturas”.
Fantástico!
Tanto que em tribunal a senhora, na qualidade de declarante negou serem suas as declarações constantes nos autos…
Mas, se na fase de instrução preparatória foi fácil a Polícia de Investigação forjar, ao ponto de o investigador, responsável pela maioria das detenções também ter sido DEFENSOR OFICIOSO, na fase judicial a situação foi diferente. Era preciso apensar provas, pois mesmo a confissão do réu, desacompanhada de dados e materiais probatórios não servem como corpo de delito.
Aconteceu, porém, que o conjunto probatório lavrado nos autos, agravado pelo facto de não ter sido conclusiva a instrução preparatória, devia ser revisto, o que levou o Ministério Público, no 15 de Outubro de 2009, a dar um parecer nos seguintes termos: “reapreciados os autos, através da acusação concluiu-se de que as divergências prevalecem” e por via disso recomendou “remeter os autos e os arguidos à DNIC para procedimentos processuais subsequentes”.
A DNIC, no entanto, decidiu não dar seguimento a essa directiva e a 18 de Outubro de 2009, apresentou um relatório final contrariando o seguimento de uma mais profunda investigação e apuramento da verdade material, conseguindo, mesmo assim, obter no dia seguinte, 19.10.2009, a assinatura do MP junto da DNIC e remeteu a juízo o processo, com as fragilidades que se lhe conhecia de raiz.
De facto, as confissões na fase de instrução preparatória foram colhidas com violência, pois os réus presos foram selvaticamente torturados e obrigados a assumir um crime que não tinham cometido, violando a Polícia Nacional desta forma o art.º 36.º da Constituição, na medida em que a tortura torna nulos os relatos dos réus presos.
Além disso, neste caso, como em todos os litígios, a Meritíssima juíza, Maria Guiomar Vieira Dias Gamboa encontrava-se perante duas verdades a serem encontradas: a verdade a respeito dos factos e a verdade no tocante ao direito.
Portanto, uma dupla tarefa: ir à procura da realidade dos factos acontecidos (verdade dos factos): «incêndio de viaturas e armazéns», e buscar o preceito legal aplicável ao caso (verdade do direito). Ora a questão de facto (quaestio facti) decide-se por meio do exame da prova, pois é por via dela que se chega à verdade processual, a uma convicção sobre o ocorrido, elemento sobre o qual foi, neste caso dos alegados incendiários, aplicado o direito (quaestio júris);
Não foram no entanto estes os carris trilhados quer pelo Ministério Público, quer pela Polícia de Investigação Criminal. Primeiro porque os réus foram acusados de CRIME DE SABOTAGEM e CRIME DE FOGO POSTO na base de uma lei obsoleta (a sabotagem fixa uma condenação entre 20 a 24 anos de prisão maior, norma jurídica instituída no tempo da ex-República Popular de Angola de partido único e o Fogo Posto atribui pena maior de oito a 12 anos). Estivemos assim, até a abertura do julgamento, na presença de uma flagrante descontextualização processual.
Outrossim, o Ministério Público devia comprovar o facto e a autoria do delito, não competindo ao Poder Judiciário ir ao socorro da deficiência probatória, mais a mais quando, como no caso, houve prisão indevida.
No processo penal as alegações ao facto objecto da pretensão punitiva têm de ser provadas pelo acusador, incumbindo, ao acusado, demonstrar apenas os factos impeditivos e extintivos e isso não aconteceu ao longo deste processo. A DNIC, em nenhum momento apresentou um bidon de combustível, um isqueiro ou outro elemento inflamável, em posse dos 13 autóctones detidos.
Por aqui já se pode inferir que não é tarefa difícil constatar a falta de verdade, seriedade e profissionalismo dos agentes da Investigação Criminal, por viciação dos autos, porquanto em nenhum momento apresentou e juntou ao processo uma prova concludente de um ilícito, empolando sem vergonha e a seu bel-prazer a sua intenção condenatória.
Os agentes da DNIC arrancaram confissões, torturam os réus, fizeram-lhes assumir crimes não cometidos e puseram-lhes em cima aquele malfadado “Carimbo a óleo em uso na nossa sociedade”, «DELIQUENTES ALTAMENTE PERIGOSOS, INCENDIÁRIOS A MANDO DO PARTIDO UNITA».
Mais grave ainda, prenderam uma criança: Geni Jack Pierre, menino de 15 anos de idade, colocando-a numa fedorenta masmorra em íntima convivência com delinquentes perigosos. Prenderam-no por alegado flagrante delito, quando o mesmo se encontrava por volta das 23 horas na casa do seu amigo David interrogaram-no em despeito da falta de nomeação de curador a réu menor de 18 anos (art.º 24.º da Constituição), o que, no caso, diz ainda a nossa farta jurisprudência, constitui nulidade insanável a ser reconhecida de ofício.
A defesa dos réus, diante de tantas provas forjadas tendentes a levar o Tribunal a tomar medidas injustas e ilegais, sugeriu que os mentores destas falsidades, mais concretamente os instrutores e investigadores da DNIC, fossem chamados à barra do tribunal a fim de serem confrontados com a sua indecorosa e dolosa conduta, que em nada enobrece a função dos fazedores da justiça
Mas, com esta abordagem denunciadora ainda não abordamos um outro factor desviante, o que está ligado ao desempenho dos peritos, que não se contentaram em realizar a sua missão de modo equidistante, preferindo, parcialmente, meter o seu grão de sal, nomeadamente na seguinte afirmação: “(…) a simulação dos métodos utilizados na queima dos contentores que se achavam nas quintas, situadas na comuna acima referida, utilizando instrumentos metálicos para o arrombamento dos cadeados e em seguida, introduziam-se no interior dos mesmos e posterior deitavam o combustível iluminante e ateavam fogo. (…) posteriormente dirigiam-se para um local ao encontro do cidadão Bulai Manuel, mandante. Que pagava valores monetários em kwanzas como recompensa pelas acções praticadas”.
O perito tem de ser equidistante das partes e não um auxiliar da política, logo o facto de ter manifestado opinião marginal ao objecto principal da perícia torna-o incompatível.
Mas a falsidade sobe ainda de tom quando em juízo o declarante, superintendente, David Filipe Eduardo, da Polícia Nacional, se dá luxo de espatifar a própria acusação, ao dizer que no acto da detenção dos ora réus não foram encontrados nenhum elemento como bidão de gasolina, isqueiro, fósforo ou pólvora. A sua intervenção ( a da polícia) deveu-se ao cumprimento dos mandados de captura. Que não tem em mente quem os terá assinado”.
Eloquente!
Esta é a declaração de um agente que participou na maioria dos autos, muitas vezes como jogador (investigador) e arbitro (defensor oficioso).
Enfim, também o depoimento dos alegados denunciantes e lesados dos meios incendiados não se enquadram na acusação, pois a maioria nega ter prestado tais declarações na DNIC e ainda por cima não serem donos dos bens queimados. Para dar um exemplo, o alegado ofendido, Jorge Pio Chingalule, foi dado como proprietário de um camião Volvo FH12, quando na realidade este cidadão, nunca teve sequer uma bicicleta, dizendo ter sido forçado a assumir tal mentira. Quer dizer, o Ministério Público somente conseguiu, mesmo em contradição, demonstrar a tipicidade dos factos, porém não conseguiu provar que os réus presos fossem agentes do crime, quer de sabotagem, quer de fogo posto.
Na realidade dos acontecimentos e para quem acompanhou o processo, o maior crime dos réus foi o de serem gente pobre, sem nome de família e bodes expiatórios à mão de semear para qualquer imputação criminal por parte da Polícia Nacional.
E, por uma vez, graças a uma defesa minuciosa e precisa, muito em cima das incoerências do processo, após mais de 8 sessões de julgamento a juíza da causa, Dra. Maria Guiomar Vieira Dias Gamboa, da 1ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, com base na força da lei e do direito, agindo em consciência e com profundo sentido de justiça e imparcialidade, em face de tanta falsidade, a magistrada judicial teve a convicção de que, para os réus, a sentença mais justa a ser aplicada, com justiça e imparcialidade, seria, como acabou por ser, a ABSOLVIÇÃO! Mandou-as embora, em paz, por falta de provas, fazendo com este seu gesto, SÃ JUSTIÇA.
Agora caberá aos réus decidir se esquecem o incidente que lhes roubou mais de um ano de liberdade ou intentam uma acção contra o Estado por prisão indevida, no sentido de os indemnizar pelos prejuízos morais e físicos sofridos.
*Voltaremos em próximas edições

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