terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (2)


ANTÓNIO SETAS

«Naweje, como os Mbangala chamam Lueji, tinha tomado o controlo do reino da Lunda, mas governava apenas como regente. Um dia, quando Kinguri e Naweje caminhavam ao longo do rio Lukongolo (rio não identificado), na Lunda, Kinguri deixou a irmã sozinha por momentos, e foi para a mata procurar alguns homens que estavam a fabricar maluvo algures perto dali. Não muito depois de ele a ter deixado, um caçador chamado Lukokexa apareceu e falou com Naweje, oferecendo-lhe de presente a cauda de um elefante que acabara de matar (as cerdas da cauda de elefante eram amuletos poderosos). Naweje aceitou e, em troca, deu ao caçador alguma comida. Entretanto, Kinguri, depois de ter entrado no mato à procura dos fabricantes de maluvo, teve um pressentimento, um sinal de que algo indesejável deveria estar a acontecer em casa. Regressou imediatamente e encontrou Naweje em companhia de Lukokexa. Ora os requisitos da posição de Naweje proibiam a presença de homens na sua residência. Kinguri, devido a essa violação do interdito, ficou desconfiado e pediu informações sobre a identidade do intruso. Naweje explicou o que se tinha passado e mostrou a cauda de elefante que tinha recebido como presente. Acontece que essa cauda, ali, naquele sítio, nesse momento, também constituía uma violação dos costumes, pois a cauda de elefante era atributo exclusivo dos reis e Naweji apenas era regente. Desconfiado, Kinguri deu imediatamente ordem a Lukokexa para sair daquela casa, mas o caçador recusou e, furioso, ele atacou-o com uma faca mágica que tinha herdado do seu pai (mwela). Em vão, porque nessa altura a cabeça do caçador vomitou fogo e Kinguri foi obrigado a fugir.
Regressou mais tarde, numa outra tentativa para expulsar o usurpador, mas desta vez a boca do caçador transformou-se em presas e mandíbulas de um perigoso felino selvagem. Kinguri compreendeu então que o seu inimigo possuía forças sobrenaturais muito mais poderosas do que as suas. Acatou a supremacia do rival e pôde ali ficar. De início ainda tentou roubar os talismãs que tornavam Lukokexa tão poderoso, mas como não conseguiu concordou em deixar a Lunda se, antes, o caçador lhe ensinasse os seus segredos mágicos. Lukokexa aceitou e revelou os poderes dos seus amuletos a Kinguri. Estes incluíam uma substância chamada nzungu, colhida na árvore mbamba, (amuleto não identificado; a árvore, mbamba, serve para preparar os remédios yitumbo do caçador kibinda). O nzungu não só permitia a Kinguri realizar os feitos de que ele tinha sido vítima, mas também apartava as águas dos rios e adivinhava a presença de cobras, que em seguida ele matava. Também deu a Kinguri um arco mágico, que permitia abater os animais mais perigosos da floresta. Assim equipado, Kinguri deixou a Lunda e iniciou a sua viagem para Oeste, acompanhado por Kyniama».

Estados Cokwe baseados no kinguri

O povo que detinha a posição kinguri dispersou-se muito lentamente, aparentemente estabelecendo-se repetidas vezes, numa contínua fuga de lugares sob influência das instituições políticas Luba, em plena expansão. Os novos acontecimentos históricos que originaram o movimento do kinguri, oculto sob a imagem de “uma viagem” (de notar que a posição kinyama, que parece ter partido mais ou menos na mesma altura, deslocou-se numa direcção diferente e acabou por se deter entre os Lwena do Alto Zambeze), deram continuidade às forças do lueji, possuidoras de tecnologia mais avançada. Por fim, estes repetidos reencontros, certamente muito pouco pacíficos o mais das vezes, não impediram o kinguri de formar um cordão de Estados ao longo de uma linha que se estendia do Kalanyi, através do território Cokwe, em direcção às nascentes do Kwango e às fronteiras dos Mbundu. As técnicas mágicas adquiridas aos Luba forneceram a chave do seu sucesso na travessia de territórios que não lhes era familiar. Uma adaga enfeitiçada chamada mukwale, em particular, ajudava-os a abrir caminho contra qualquer um que se opusesse à sua chegada. Ficou desse período da história uma reputação de grande agressividade e crueldade da parte dos Lunda. Uma tradição Lunda afirma que Kinguri deixara Kalanyi em busca de um exército muito forte que lhe permitisse regressar à Lunda e vencer o ocupante Luba. Os Cokwe fornecem um pormenorizado itinerário para a viagem de Kinguri. Atravessara o Kasai, próximo da embocadura do Lonyi, um pequeno afluente da margem esquerda do grande rio, avançou, subindo o Lonyi para terras mais altas e abriu caminho para oeste e sul, cruzando os rios Luhembe, Kaximo, Lwana, Cihumbo, Sombo, e Lwaximo, antes de fazer a sua primeira paragem prolongada entre as linhagens de uma área conhecida por Itengo (perto de Saurimo). Deslocou-se depois para a região conhecida mais tarde como Mona Kimbundu, não muito longe de Itengo, a sudoeste, onde também permaneceu por muito tempo. Finalmente, continuou em direcção às nascentes dos rios Kwango e Kukumbi e parou de novo, antes de continuar na direcção dos Songo. Um episódio narrativo de origem Lunda refere-se à hostilidade que marcou as relações entre o kinguri e os Lunda na época em que os emigrantes se detiveram perto da nascente do rio Cipaka.
Algum tempo depois de Kinguri ter deixado o Kalanyi, Lueji enviou mensageiros com missão de se encontrarem com o seu irmão. O encontro acabou por ter lugar num acampamento que ele estabelecera próximo do rio Nagwiji (a partir de então chamado Cipaka). Os Lunda suplicaram Kinguri que voltasse para casa, mas ele recusou a proposta e decidiu prosseguir caminho, sem antes, porém, dar ao rio o novo nome de “Cipaka”, para comemorar a sua separação definitiva.

1) Actualmente, os Mbangala traduzem a palavra mutswalikapa como “estamos separados” , e alegam que este acontecimento marcou as fronteiras entre a Lunda e o kinguri.
2) Este episódio refere-se certamente a uma época anterior ao estabelecimento do kinguri na Baixa de Cassange, cujas fronteiras com a Lunda nunca foram marcadas pelo rio Cipaka
3) Portanto este episódio descreve a formação de um reino mais antigo, próximo do Cipaka (talvez Itengo), onde portadores do título kinguri recusaram reintegrar-se no Estado Lunda em expansão.
A expansão do império Lunda para oeste levou à formação de pequenos Estados que actuariam como barreira entre a capital Lunda e o kinguri, cada vez mais para longe de Kalanyi. Vários destes governantes (entre eles Cibinda Ilunga)estabeleceram-se entre os Cokwe, e um deles expulsou o kinguri do Estado secundário no alto Cipaka, e o seu título, mona kimbundu, permaneceu como o nome da região asservida. A dispersão de titulares a partir da Lunda continuou através do séc. XVII, quando novos reis se estabeleceram entre as linhagens Xinge, que viviam a leste do médio Kwango; outros ainda tornaram-se governadores de províncias ocidentais do império Lunda, que protegiam o mwata yamvo da nova ameaça que o Estado de Kasange, baseado no kinguri e cada vez mais poderoso, representava para a Lunda, numa fase posterior.

O declínio das linhagens dos Lunda do kinguri

A pressão constante produzida pelo avanço dos Luba produziu mudanças fundamentais nas estruturas sociais e políticas associadas ao título kinguri. O número reduzido de pessoas das linhagens ligadas a Lucaze na Mwazaza que de início deixou a Lunda foi obrigada a atrair grande número de novos seguidores, de outras origens., o que levou o kinguri a suprimir as rígidas e incómodas divisões de linhagens no interior do seu grupo (linhagens segmentares, como sabemos), a fim de mais facilmente poderem absorver os novos recrutas. Um episódio narrativo Imbangala relata, de modo explícito, como o kinguri, na sua viagem através das terras Cokwe, incorporava grupos de parentesco locais. De acordo com os historiadores tradicionais, à data da chegada de Kinguri a oeste do rio Cipaka (actualmente conhecida como Mona Kimbundu), a sua crueldade era tão grande que chegava a preocupar mesmo os que o seguiam desde a Lunda. Eles viram que a prática de matar acompanhantes de cada vez que se levantava ou se sentava tinha reduzido grandemente o número desses seguidores e sentiam-se cada vez mais ameaçados enquanto os espíritos que apoiavam o título persistissem na sua necessidade de tais sacrifícios.

Imagem: no.comunidades.net

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