sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Probidade pública. A propósito do seu conteúdo e oportunidade de vigência.


Albano Pedro
A Probidade Pública vigente ao abrigo da Lei n.º 3/10 de 29 de Março de 2010 é um instrumento político-normativo a cujo escopo se reporta a disciplina do comportamento do agente público, assim definido na própria Lei, e sua relação com os particulares (cidadãos, empresas e corporações diversas) e com o património do Estado. Quer dizer que por um lado, estabelece as balizas sobre a relação do servidor público com os serviços e instituições públicas ao serviço dos particulares descrevendo os respectivos deveres e sanções e por outro lado impõe mecanismos procedimentais sobre o tratamento ao património público por parte dos gestores públicos. Vem daí que os actos de improbidade se repartem em dois grupos, nomeadamente: actos contra os princípios da Administração Pública (art.º24º) que dizem respeito a todos os agentes públicos, sempre que violem regras relativas ao serviço público em geral e actos que conduzem ao enriquecimento ilícito (art.º25º) ou que causam prejuízo ao património público (art.º26ª) que dizem especialmente respeito ao uso e tratamento do património público e como tal visam sancionar sobretudo os seus gestores. É sobre os destinatários desta última variante da Lei que recai a obrigação de declarar os bens (art.º27º).

É certo que na variante que estabelece as normas de relacionamento entre a administração pública e os particulares a Lei vem convocar uma série de normas ora vigentes em matéria de obrigações de agentes públicos e vem centra-las num novo nomen iuris ou espécie normativa: Probidade Pública. Aqui, o agente público é entendido como “a pessoa que exerce mandato, cargo, emprego ou função em entidade pública, em virtude de eleição, de nomeação, de contratação ou de qualquer outra forma de investidura ou vínculo, ainda que de forma transitória ou sem remuneração” (art.º 15º) definição esta a que cabem os membros do Executivo (desde o Presidente da República aos Ministros, passando pelos membros do seu gabinete e serviços de apoio, os Ministros de Estado e Secretários de Estado), os Deputados a Assembleia Nacional, os Juízes e Procuradores em todos os níveis orgânicos, Membros da Administração Central do Estado bem como dos governos das províncias, das administrações municipais e comunais, a Lei procura atravessar subjectivamente os três órgãos de soberania do Estado (Assembleia Nacional, Presidente da República e os Tribunais) entranhando todos os agentes nos diversos níveis orgânicos que lidam com os serviços públicos e com o património do Estado.
Vários princípios são chamados a assentar as bases da actuação dos agentes públicos na sua relação com os particulares. Alguns já são conhecidos noutros diplomas legais (princípio da legalidade, da imparcialidade, da prossecução do interesse público, etc.).

Outros são aparentemente novos, trazendo interpretações claras como o princípio da competência (art.º 6º), da parcimónia (art.º 13º), da responsabilidade e da responsabilização (art.º 10º), da reserva e da discrição (art.º 12º) outros ainda confusos e de difícil interpretação desde a sua enunciação. Por exemplo, não está claro o conceito legal de urbanidade (art.º 11º) ou de Lealdade (art.º 14º) visto que a Lei trata de repetir os referidos termos sem os definir deixando o destinatário da Lei num evidente equívoco entre a interpretação semântica (elemento gramatical) e a intenção provável do legislador (mens legis). O que é urbanidade ou lealdade para efeitos da Lei da Probidade Pública? De qualquer modo, os deveres e direitos estabelecidos são uma desnecessária reprodução do Decreto-Lei 16-A/95 sobre normas de procedimento da administração pública, ao que bastava uma mera remissão “mutatis mutandis” àquele diploma para abranger os membros de órgão não executivos do Estado. Tautologia jurídica que adivinha mais uma inoperância legal do diploma em causa, já que aquele diploma administrativo tem sido sombra de si mesmo ante a miríade de actos de “improbidade” praticados ao seu abrigo sem sanções de conhecimento público.

Dado assente é que a obrigação de declarar bens (art.º 27º) é imposta a um leque restrito de agentes públicos. Estes compreendem titulares de cargos políticos, juízes e procuradores, ministros, secretários de estado e governadores provinciais, entidades responsáveis pela gestão de património militar ou da polícia nacional, gestores e responsáveis dos institutos públicos, dos fundos ou fundações públicas e das empresas públicas bem como os titulares de órgãos executivos e deliberativos autárquicos. Só não se compreende o porque é que o legislador previu a declaração de bens por parte de autarcas que ainda não existem na nossa realidade política e administrativa e não elenca os titulares de cargos em partidos políticos que gerem verbas significativas do Orçamento Geral do Estado quando integram a Assembleia Nacional. É uma lacuna infeliz se não for propositada em razão de quem aprovou a Lei.

Outra questão que merece consideração é saber se os titulares de cargos em federações e associações desportivas nacionais ou provinciais devem ou não declarar bens uma vez que as organizações que dirigem fazem uso de verbas afectadas a partir do Ministério da Juventude e Desporto. Contudo pensamos que a Lei responde negativamente a esta preocupação pelo facto destas organizações sociais não gozarem de estatuto de utilidade pública como condição do seu reconhecimento como parceiro do Estado na implementação da política desportiva nacional. De qualquer modo estas exclusões igualmente abrangentes aos titulares de cargos em instituições de utilidade pública parecem sugerir que a Lei da Probidade Pública pretende impor esta obrigação aos agentes públicos propriu sensu.

No que toca aos procedimentos para a declaração dos bens (art.º 27º), embora a lei estabeleça a necessidade de declarar todos bens nomeadamente direitos, rendimentos, títulos, acções ou qualquer outra espécie de bens e valores, o modelo de declaração bens em anexo na própria Lei estabelece apenas seis grupos de bens a declarar quais sejam: bens imoveis, bens móveis, bens semoventes, dinheiro, títulos e acções. Faz juízo certo que declarar o dinheiro entesourado não é o mesmo que declarar rendimentos, e este não consta no modelo, embora sejam informações a suprir com declarações fiscais individuais. Outrossim, o modelo sugere que os bens sejam repartidos entre os existentes no país e os que se encontram no estrangeiro. A lei nem se quer obriga o declarante a indicar a cidade, província ou o país em que os bens se encontram tão pouco pede que os mesmos sejam caracterizados de forma descritiva com vista a sua concreta identificação.

Por exemplo no que toca a declaração de dinheiro, o declarante pode se quiser dizer apenas o montante e a moeda sem precisar o banco em que o mesmo se encontra depositado tão pouco precisa anexar um extracto de conta como comprovativo da existência real do montante declarado. Em boa verdade, no uso da seriedade política, estaríamos perante uma declaração e justificação de bens se à declaração fosse anexa a documentação e memórias descritivas dos bens. A Lei não exige quaisquer documentos justificativos e por isso o declarante é livre, tanto de declarar bens presentes como bens futuros, estes últimos a declarar com a perspectiva de vir a transferi-los para o seu património pessoal, quanto pode declarar bens alheios, mesmo que estejam na esfera jurídica de terceiros de boa-fé. Assim, longe de se estar perante uma verdadeira declaração de bens que na sua pompa máxima devia ser tornada pública, a Lei sugere um processo de branqueamento de capitais ou lavagem de dinheiro com vista a tornar lícito as fortunas acumuladas a custo do erário público simulado em informações secretas a circular entre os “novos-ricos” e a Procuradoria Geral de República como fiel depositário dos envelopes lacrados contendo as “famosas” declarações de bens.

A Lei engendra subtilmente a possibilidade do Presidente da República ter contacto com rigorosamente todas as declarações de bens de detentores de cargos políticos dentro do novo sistema de Administração do Estado quando determina que a declaração de bens deve ser apresentada junto a entidade que exerce poder de direcção, de superintendência ou de tutela que por sua vez remete ao Procurador Geral da República (art.º 27º n.º 5), embora a Lei seja clara em determinar que a ninguém é permitido o acesso a declarações de bens senão ao Procurador Geral da República mediante mandato judicial em caso de processo disciplinar, administrativo ou criminal contra a pessoa do declarante.

Se o Presidente da República pode sempre declarar os seus bens ao Procurador Geral da República a questão que se coloca é quem este deve declarar os seus bens uma vez que esta igualmente obrigado a fazê-lo? Interpretação lógica sugere que o Procurador Geral da República faça presente a sua declaração junto do Presidente da República na qualidade deste ser seu mandante na concretização das suas competências como o mais alto magistrado da nação. E efectivamente a Lei responde em concordância com o raciocínio lógico nos mesmos termos em que impõe a entrega a entidade que exerce o poder de direcção acima referido. Assim, ocorrerá uma relação quase desnecessária em que o Procurador Geral da República faz presente a sua declaração de bens ao Presidente da República e este devolve-lo para depositar a própria declaração de bens.

Em matéria de prazos, a Lei determina que a declaração seja presente ao superior hierárquico (entidade com poder de direcção, superintendência ou tutela) até 30 dias após a tomada de posse ao cargo nomeado ou eleito que obriga a declaração de bens e este remete no prazo de 8 dias ao Procurador Geral da República, sob pena de sanções. A Lei parece sugerir que os deputados o façam junto do Presidente da Assembleia Nacional e que este remeta as respectivas declarações de bens ao Procurador Geral da República, que os juízes remetam as suas declarações de bens ao Venerando Juiz Presidente do Tribunal Supremo, que os Procuradores façam depósito ao Procurador Geral da República por intermédio dos procuradores hierarquicamente superiores, que os Administradores Municipais o façam junto do correspondente Governador da Província; que os Ministros de Estado, os Ministros ou que os Secretários de Estado vertam as suas declarações de bens em funil para o Presidente da República, embora as relações de hierarquia em todo o sistema público devam ser interpretadas em harmonia com o novo modelo de Administração do Estado e do sistema de hierarquias inspiradas a partir da Lei Constitucional vigente.

Vale dizer que a entrada em vigor da Lei da Probidade Pública encontrou o grosso dos potenciais declarantes em manifesto atraso, o que retira a obrigação de declarar nos prazos legais. E é certo que quaisquer outros prazos estabelecidos contra a disposição da Lei tornam-se ilegais. Dai que faz sentido mas não é sancionável, o prazo que a Procuradoria Geral da República estabeleceu para a entrega dos envelopes lacrados contendo as declarações de bens por parte de agentes públicos que tomaram posse antes da vigência da Lei da Probidade Pública. Dito de outro modo, os agentes públicos nestas condições podem sempre fazer a declaração de bens fora dos prazos legais visto que as sanções não se lhes aplicam.

Apesar do esforço do legislador em tornar escorreita a interpretação da Lei ela não deixa de emitir luzes pouco nítidas desenhando zonas acinzentadas para uma clara e coerente interpretação. Para responder a esta e demais questões bem como a integrar as lacunas desta Lei, um regulamento é necessário até para tornar decritiva a declaração de bens. Até lá a Assembleia Nacional pode sempre interpretar a Lei em resposta as preocupações que ela levanta (art.º 44º). Juízos de valores a vazar sobre o processo de declaração de bens remete-nos a percepção da necessidade dos membros das mais altas esfera do poder do Estado de “oficializar” os primeiros ricos angolanos encontrados no seu círculo, independentemente da origem das fortunas para que a classe de ricos emirja na realidade angolana e se concretize uma verdadeira estratificação social com base económica e financeira e num futuro próximo o capitalismo de angolanos seja um facto.
Pois que, se por um lado a intenção da Lei é acabar com o enjoativo ambiente de abusiva promiscuidade cruzando gestores públicos e património do Estado que tem enterrado o país num enorme foço de corrupção, por outro lado, as suas insuficiências e lacunas acabam por fazer gorar os esforços tendentes a “urbanização” da consciência do agente público remetendo a Lei na categoria de espécie normativa facilitadora do enriquecimento ilícito. Daí vem a inoperância efectiva desta Lei que é até reforçada pela existência de condições materiais que prevêem a sua impossível eficácia como o clientelismo promovido pelo próprio

Estado quando condiciona o bem-estar dos titulares de cargos públicos com a doação de viaturas, casas, viagens sem custos visíveis para o seu beneficiário para além da incapacidade dos salários públicos evoluir a situação económica e patrimonial do agente público. De qualquer modo, é de elogiar a escolha da espécie normativa: Probidade Pública como terminologia sonante para atrair as atenções dos cidadãos para uma nova era na relação entre os agentes públicos e o dever ou património do Estado.

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