sábado, 2 de julho de 2011

Um caso de escravatura moderna. Time Elite acusado de colocar jovem vivo na morgue da mortuária do Hospital Maria Pia


Neste artigo fazemos o relato de uma parcela de vida de um jovem de 19 anos que foi escravizado e drogado com o intuito de o matar. Os seus depoimentos, que registámos na totalidade, estão aqui fielmente reproduzidos.

William Tonet & Arlindo Santana

Chama-se Joaquim Henrique José da Costa, tem 19 anos e nasceu no Huambo. Até à idade de 10 anos, quer dizer, até 2002, viveu na Caála em casa duma tia e do seu marido e a sua existência pouco mais era que isso mesmo, a criança nem sequer frequentava a escola.

Chegado a essa idade, o Joaquim teve a oportunidade de conhecer um indivíduo que estava de passagem pela Caála e passou a frequentar a casa da sua família de adopção. Chamava-se Ricardo e era dono de uma pequena empresa de segurança, o Time Elite, instalado nas imediações do Largo da Independência, antigo 1ºde Maio.

De conversa em conversa, o homem acabou por fazer uma proposta que só augurava dias futuros mais risonhos para o “Quim”. Propunha ele que o rapaz o acompanhasse até Luanda onde lhe seria dado abrigo, cama e mesa, além de, uma vez ali instalado, ele poder aprender a ler, o que, de facto, era o mais importante, dizia o Ricardo. Em contrapartida, o rapaz daria uma ajuda na empresa de que esse senhor era proprietário.

A ideia vingou, os tutores do Joaquim aceitaram a proposta e o menino acompanhou o seu novo protector até Luanda, onde lhe foi disponibilizado nas instalações da empresa, mais precisamente, no ginásio de uma escola, a antyiga escola comercial no 1.º de Maio, que a Time Elite tinha alugado e que funcionava em paralelo com o serviço de Segurança Privada, um quarto para dormir, além da alimentação e algum dinheiro de bolso.

O dito ginásio está aberto ao público e versa na prática de aulas de kick-boxe, luta greco-romana e fitness. Segundo o Joaquim, havia atletas do Inter de Luanda que o frequentavam.

Trabalhar para ele, era só dar uma ajuda no transporte de mercadorias para o aeroporto e na limpeza do ginásio, como tinha sido previsto. Salário era dinheiro de bolso, quando calhava. Quanto à escola, isso ficaria para mais tarde, quando chegasse a nova época de inscrições. Entretanto, os meses foram passando, chegou a época da retoma das escolas primárias, tempo das inscrições, mas o Joaquim não foi inscrito nesse ano.

O trabalho seguia o seu rame-que-rame, a rotina, nada de especial, isto é, carregar várias vezes por mês uma carrinha com mercadoria, umas caixas, sem saber o que lá havia, para serem despachadas no aeroporto, e aí, depois de a carrinha ser esvaziada, carregá-la de novo com caixas, coisas pequenas, que vinham do estrangeiro. Ele metia-se na carlinga da carrinha, dispunha, como lhe mandavam fazer, a mercadoria, e como era ainda pequeno, ali ficava confundido e metido entre as caixas que ele acabara de arrumar. Foi assim a sua vida até ao dia em que lhe foi imposta uma nova e muito estranha tarefa. Entretanto, a inscrição na escola tinha sido definitivamente esquecida, o Joaquim estava condenado a ser analfabeto.

Tráfico de crianças
A estranha tarefa em questão a que o Joaquim teve acesso por imposição do Ricardo, tinha ele doze, treze anos, se não era alegado tráfico de crianças (escravas), parecia, na sua humilde opinião, assemelhar-se a isso tal como a lágrima se parece com uma gota de orvalho.

E esse “trabalho”, na versão do Joaquim, durou até 2008, quando o Ricardo e os seus cúmplices foram apanhados pela polícia. Nessa altura disseram aos agentes da autoridade o que era inacreditável, mas que foi aceite: as crianças vinham de uma creche e eles estavam a levá-las para casa.

O caso terá sido dirimido por via da tradicional gasosa angolana, ficando assim impunes o Ricardo e os seus capatazes, apesar de o seu desempenho, segundo a versão do Joaquim, ser um crime repugnante, do pior que as maiores baixezas da humanidade são capazes.

Que mais poderia ser do que tráfico de crianças se nenhuma dessas crianças falava português, só falavam lingala!?

O esquema obedecia aos seguintes passos:
Primeiro ir ao bairro Palanca buscar as crianças, entre dez e vinte crianças! Estas encontravam-se reunidas numa casa que parecia uma igreja. E aonde?

O Joaquim já não soube dizer, iam sempre de noite, duas vezes por noite, entre as 23 horas e a meia-noite ou uma da manhã, como poderia ele, hoje, reconhecer a casa? Só se lembrava de que “era uma casa grande, de chapa, parecida com uma igreja”.

As crianças eram metidas numa carrinha e levadas até ao Kifangongo, ou Cacuaco, enfim para esses lados.

O Ricardo, acompanhado pelo seu adjunto, um chamado Rui, - trabalhavam sempre juntos e esse homem fazia também ofício de director do ginásio -, levavam as crianças até a um barco onde estava alguém à espera. Aí, elas eram embarcadas e lá iam, sem que se saiba para onde.

Nesta faina, o Joaquim era quem se encarregava das crianças pequenas, de 6, 7, ou 8 anos, dava-lhes sambapitos, entretinha-as, mas não podia ir até ao barco, isso só o Ricardo e o seu adjunto. Depois, voltavam todos para Luanda, sem o Joaquim receber a mais pequena explicação do que se estava a passar.

Em todo o caso uma coisa ele pôde apurar, realmente as crianças só falavam lingala.

Este trabalho durou até 2008, até ao dia da intervenção dos polícias corruptos, que receberam a gasosa e deixaram o Ricardo e o Rui em liberdade. E foi a partir daí que as coisas começaram a correr mal para o Joaquim.

Estadia numa gaveta da Casa Mortuária
O rapaz tinha crescido, não era cego nem surdo, podia falar, portanto, tinha-se tornado uma pessoa perigosa para as actividades obscuras do Ricardo. A situação de mal-estar entre ele e o seu “patrão” deteriorou-se lentamente e o que já tinha medrado há muito tempo na cabeça deste último, tomou aqui há uns meses atrás contornos muito claros de tentativa de assassinato sobre a pessoa indefesa do Joaquim.

Um dia, em Agosto de 2010, o Ricardo chegou ao ginásio por volta das 23 horas. Estava bêbado. Pediu ao Joaquim para lavar o carro e o rapaz respondeu-lhe que o lavaria no dia seguinte. O Ricardo não gostou da resposta, pegou num saco para esconder a câmara de segurança do ginásio e desfez o Joaquim com um verdadeiro arraial de murros e pontapés, a ponto de lhe partir o maxilar no lado esquerdo da face. Depois pegou na sua vítima desmaiada e fechou-a num reduto que servia de dispensa.

No dia seguinte, pela manhã, chegou a mulher da limpeza do escritório. O Joaquim, incapaz de falar por ter o maxilar partido, bateu quanto pôde na porta da dispensa e a mulher conseguiu abri-la.

Quando viu em que estado ele estava e depois de ter ouvido a sua versão, a única ideia que lhe veio à cabeça foi chamar a polícia. Esta chegou ao ginásio e decidiu levar o Joaquim ao hospital, só que, entretanto, tinham chegado o Ricardo e o Rui, que conseguiram dar a volta à situação fazendo crer aos polícias que iam levar eles mesmos o rapaz ao Josina Machel. Terão dado a infalível gorgeta nacional e os polícias foram-se embora como se nada se tivesse passado.

A partir deste lance, o que se vai passar leva-nos a entrar sem sermos convidados num filme de terror.

O Joaquim, em vez de ser conduzido ao hospital, foi drogado à força, perdeu os sentidos e foi transportado assim, como se estivesse morto, à Casa Mortuária do Hospital Josina Machel. Como isso aconteceu, com quais cumplicidades e atropelos às leis não se sabe, mas certamente que, mais uma vez, o que funcionou muito bem foi a gasosa.

Metido numa gaveta ensanguentada da morgue, o destino do Joaquim situava-se agora a uns dois metros debaixo de terra. Porém, como a vida quando parece estar a parar por vezes reacende-se, aqui também aconteceu algo de parecido, pois não tendo sido a droga suficientemente forte para o adormecer de vez, no momento em que o funcionário da morgue foi abrir a gaveta para retirar um dos cadáveres que ali estava, viu o bom do Joaquim a fazer gestos que provavam sem discussão que estava vivo.

Incapaz de falar, coberto do sangue que servia de tapete à gaveta onde ele tinha passado algumas horas, enregelado, pois essas gavetas são refrigeradas, o seu estado inspirou tanta piedade, que, sem hesitação, ele pôde ser internado. Sem pagar gasosa.

A segunda vida do Joaquim
Tendo deste modo escapado à morte, o Joaquim, teve a sorte de se encontrar ali, numa dependência a abarrotar de gente do Hospital Josina Machel, com a Mana Dina, uma enfermeira que também fazia serviço no ginásio do Ricardo. Vejam a coincidência! Ela e outras pessoas internadas, conseguiram reunir o dinheiro necessário para tratar do maxilar partido. O Joaquim por ali ficou e, quando foi dado fim ao tratamento, mais uma vez a sorte lhe sorriu, foi aceite em casa da mana Dina, onde se refugiou durante umas semanas.

Enquanto lá esteve, a sua anfitriã tomou a iniciativa de o defender e levou-o a fazer uma queixa à polícia. Estamos em finais de 2010. E o rapaz, com o maxilar mais ou menos tratado, mas ainda com os ferros, já podia falar, mal, mas fazia-se entender.

No seguimento da sua queixa, os autores desta tramóia, o Ricardo e o Rui, foram chamados a fazer declarações, o que, mais uma vez, permitiu a entrada em cena da indefectível gasosa.

Os algozes do Joaquim declararam não se sabe bem o quê, mas não é isso que é importante. O importante é que em Angola a lei parece funcionar muito mal, principalmente, quando se trata de gente pobre, as punições por força de lei não existem, para os grandes, aplicam-se quando calha, a preceito, e se for a arraia-miúda a apelar à justiça, quase sempre nem por sombras terá hipótese de ganhar a sua causa.

O Ricardo e o Rui passeiam-se hoje por essas ruas esburacadas de Luanda nos seus jipes, escorreitos, totalmente impunes, enquanto neste preciso momento, Joaquim, um jovem de 19 anos, a quem foi negado o acesso ao ensino, escravizado durante quase dez anos e ainda por cima alvo exclusivo de uma tentativa de assassinato, luta para que tratem definitivamente do seu maxilar. Não pede mais nada, nem vingança nem resgate, só espera que os seus carrascos paguem o tratamento do seu maxilar e lhe retirem os ferros que serviram para levar a cabo a operação

Em sua frente perfila-se uma vida de miséria e de dor. Dezanove anos, Joaquim, a idade do amor. Mas para ele… o que será isso, amor?

Um comentário:

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