quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (3)


ANTÓNIO SETAS
Quando chegaram à terra dos Cokwe, próximo das nascentes do Cipaka, o detentor do título de maior categoria desta região, Musumbi wa Mbali, aceitou enviar um certo número dos seus súbditos para junto de Kinguri, de facto enviados à morte como futuros sacrifícios humanos exigido pelos espíritos do kinguri. Mas Musumbi wa Mabali desconfiou das intenções dos Lunda, e concordou enviá-las apenas sob a protecção de um dos seus titulares subordinados, Kasanje ka Kibuna (também chamado Kulaxingo – mais tarde os detentores deste título tomaram conta da posição kinguri e fundaram o Estado de Kasange), e para o ajudar vários grupos relacionados com a sua pessoa, conduzidos pela sua mãe e pelos seus três irmãos, KibunaCokwe kya Musumbi, Pande ya Musumbo e Mbumba a Musumbi, além de outros grupos que não ficaram na memória colectiva.
Tão grande mudança social é referida numa outra narrativa Cokwe da região do alto Kasai, onde os efeitos da abolição do kinguri parece terem deixado as marcas mais profundas.

Uma das mulheres do grupo de Kinguri estava prestes a dar à luz quando eles chegaram à margem de um rio que dizem ser o Kasai. Isto irritou Kanyika ka Tembo, um companheiro de Kinguri, o qual tinha proibido as relações sexuais a fim de evitar nascenças que só atrasavam uma marcha já de si lenta e perigosa, pois era preciso avançar depressa para sítios onde houvesse mais caça, que nessa altura era rara e ameaçava famina entre os membros do grupo, apesar dos poderes mágicos dos arcos e das azagaias de Kinguri. Apesar de se ter adiado a travessia do rio até a mulher dar à luz, a filha e a mãe morreram, e toda a comunidade aceitou as suas mortes como um sinal seguro de descontentamento dos espíritos ancestrais. Kanyika ka Tembo (provavelmente chefe de linhagem, que a tradição retrata como tio da mulher falecida), ao tomar conhecimento da morte da sobrinha, censurou violentamente o marido desta, bateu-lhe severamente e ordenou-lhe que enterrasse a esposa e o bebé, o que ele executou a contragosto, sabendo que violava as leis em vigor em todas as linhagens, em que a responsabilidade pelos enterros pertencia aos parentes da pessoa falecida. O marido, de uma linhagem diferente, deveria ter tido apenas deveres secundários a realizar.

Análise parcial:
1) Kanyika ka Tembo ameaçou duplamente a segurança dos seus parentes. Primeiro , ao proibir relações sexuais, pondo em risco a sobrevivência do grupo; segundo ao ordenar que o marido da falecida, de uma outra linhagem, se ocupe do enterro. Como lemba ya ngundu que era, ele devia não proibir a procriação, mas ao contrário, distribuir pelas mulheres o pemba (argila branca), que servia para salvaguardar as suas capacidades procriadoras, e ao deixar de realizar os rituais do óbito poderia causar o regresso do espírito dela para perseguir os seus parentes vivos.

Continuação:

Quando o marido foi enterrar a mulher na margem do rio, um grande número de pássaros levantaram voo do cimo de uma árvore. Ele conseguiu matar um deles, o que constituía o sinal de um favor sobrenatural, já que era sabido que se ele não estivesse em harmonia com os espíritos nunca poderia ter atingido o pássaro. Depois, ao retirar as vísceras ao pássaro, encontrou-lhe na goela sementes de painço e sorgo (massango e massambala), o que significava que deveria existir por perto uma comunidade que praticava a agricultura, permitindo ao esfomeado grupo encontra comida que os tirasse da situação de miséria em que estavam, em risco de morrer de fome. Kinguri e Kanyika ka Tembo concluíram que tinham sem demora que prosseguir caminho para a outra margem do rio. Começaram a atravessar o rio a pé, porque o seu caudal o permitia, mas de cada vez que um deles se metia a caminho rio adentro, as águas cresciam abruptamente e engoliam-no. O nzungu de Kinguri, assim como o seu arco mágico, tinham aparentemente perdido o poder. Tudo isso – as dificuldades para encontrar comida e atravessar o rio - foi atribuído ao facto de Kanyika ka Tembo ter violado as leis ancestrais da Lunda.
Apesar do comportamento instável do rio, conseguiram atravessá-lo sobre uma ponte de madeira de muyombo (árvore onde repousam os espíritos da linhagem, segundo os Cokwe e os Mbundu), construída por um dos outros homens do grupo Ndonje, ponte que permitiu ao povo do kinguri atravessar não apenas o rio, mas também o abismo metafórico que o separava da harmonia com o mundo sobrenatural. E, como prova do restabelecimento dessa boa harmonia, depois de terem conseguido atravessar o rio, depressa encontraram uma aldeia cuja população tinha armazenado abundantes reservas de massango e massambala. Foram muito bem recebidos e, após terem recebido suficiente comida para tirar a barriga de misérias, Ndonje e o kinguri partiram com uma parte do grupo rumo a oeste e deixaram Kanyika ka Tembo com a parte restante naquela área, para se estabelecerem mais tarde perto da nascente do Kasai.

Análise:

2) Ao proibir o nascimento de crianças, Kanyika ka Tembo eliminava a função procriadora das mulheres, o que equivalia a um passo crucial na abolição das linhagens numa sociedade matrilinear. A partir daí, todas as crianças entrariam no grupo através da adopção ou escravização, e teriam deveres de fidelidade somente para com o kinguri. A maternidade, as linhagens matrilineares e o parentesco deixariam de existir.
3) A tradição aqui narrada vem de descendentes de Kanyika ka Tembo, que se separaram do kinguri por não estar de acordo com a supressão das linhagens. E a sua hostilidade para com o novo modo de vida do kinguri, aparece muito claramente na salvação conseguida graças à ponte de mayombo, que os aproximava de novo dos espíritos ofendidos.
4) A fome, e todas as outras dificuldades, mesmo a inoperância do nzungu e do arco mágico, resultam da ofensa perpetrada contra a organização linhageira.
5) Por outro lado, o marido, ao conseguir matar o pássaro obteve a prova cabal de que tinha agido em conformidade com os princípios básicos das grupos de filiação e, por consequência continuava a gozar da bênção do mundo dos espíritos.
6) As sementes que encontrou na goela do pássaro apontam não apenas para uma fonte próxima de comida, mas também para o regresso à vida sedentária agrícola, baseada nas linhagens. Também simbolizam a fertilidade das mulheres e, no seu todo, a recusa de seguir o kinguri, na sua escolha de suprimir as linhagens e na sua vida de deambulações e pilhagens.


Existem muitas outras indicações de que os Lunda abandonaram as linhagens. Mais tarde, no Kasanje, o tema subjacente atinente às mulheres, que tornavam impura a autoridade política derivada dos Lunda, reaparece em várias tradições. O lukano, símbolo de autoridade Lunda, só podia ser usado por varões, depois de eles terem passado pelos ritos da circuncisão. Em certas circunstâncias, o bracelete nem sequer toleraria a presença de mulheres por perto. Uma variante da tradição Lunda confirma o tema omnipresente das mulheres como ofensoras do título kinguri.


Lueji tinha de confiar o lukano aos seus guardiães tubungu durante os períodos menstruais para evitar estragá-lo e assim trazer o infortúnio ao seu povo. Numa dessas ocasiões Lueji entregou o bracelete a Cibinda Ilunga, o seu marido, em vez de o dar aos seus conselheiros. Esse gesto irritou Kinguri e levou às disputas que resultaram na sua partida da Lunda.

Análise:

1) Lunda perdeu a favor dos Luba o seu símbolo sagrado de autoridade.
2) O kinguri passou doravante a ter o maior cuidado quanto à presença de mulheres para não lhe acontecer a mesma coisa.
Derivada talvez do incidente histórico da travessia do rio temos uma outra tradição Imbangala com um enredo diferente

Quando Kinguri chegou ao rio Kwango, naquele tempo chamado Moa, a grande largura e a profundidade das sua águas apresentou-se como um obstáculo ao se avanço. Kinguri pôde atravessá-lo com um salto mágico graças ao nkungu, mas os seus companheiros não puderam. Entre estes últimos contava-se Kwango, filha de Kinguri, que quis atravessar o rio tal como o seu pai tinha feito contra o aviso dos makota, que lhe diziam que uma tentativa dessas era uma loucura. Mesmo assim ela decidiu saltar, mas falhou e afogou-se no rio, o qual desde então passou a ser conhecido pelo seu nome.


Esta tradição, embora diferente da do rio Kasai, com a gravidez da sobrinha de Kanyika ka Tembo e a posterior travessia pela ponte feita de muyombo, assenta também na relação entre as mulheres e a dificuldade de atravessar rios. Estas estruturas idênticas chamam a atenção para o facto de as mulheres e as linhagens serem incompatíveis com a sobrevivência do povo do kinguri. A supressão das linhagens permitia vencer as limitações do recrutamento impostas pelo parentesco e recrutar qualquer elemento de fora e integrá-lo no grupo com um estatuto igual ao de todos os membros mais antigos. Por outra, a lealdade entre linhagens deixaria diluir a obediência total que o kinguri exigia ao seu povo, com a supressão da autoridade dos makota e outras posições controladas por linhagens.
Claro que esta radicalização do kinguri trouxe algumas dificuldades, à medida que eles lutavam para manter a lealdade daqueles que se ressentiam da perda das linhagens, o que levou ao êxodo de vários chefes de linhagens ainda antes de atingirem o alto Kwango (ver Kanyika ka Tembo). Ao longo do caminho foram deixando o kinguri, adoptaram um modo de vida sedentário e formaram os seus próprios Estados, tais como os de Mwata Kandala e Nduma a Tembo. (Cokwe). No entanto, o grupo principal tinha encontrado uma solução para o problema da formação do Estado entre as linhagens segmentares da região a leste dos Tumundonogo, solução que viria a ter consequências dramáticas a oeste. À roda de 1650, o kinguri tinha títulos reais em todos os principais Estados tumundongo – Kulaxingo, que se tornaria o kinguri em Kasanje, mwa Ndonje, Munjumbo, Kabuku ka Ndonga e sem dúvida outros mais.

Imagem: http://protectoradodalunda.blogspot.com/

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