terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Petróleo da Ira


«Bastava imporem uma ditadura clara, sem hesitações, como as anteriores, para nós então também escolhermos outras formas de luta, mais adequadas ao alvo. As evidências de corrupção e enriquecimento ilícito são tão claras que mais valia terem deixado a bola passar ao lado… A cara de Santo não fica bem no corpo de pecador… Quem acha que foi caluniado, que está a ser injustiçado, que mostre, então, publicamente, como conseguiu – em tão pouco tempo, ganhando e trabalhado tão pouco – enriquecer de forma tão escandalosa. Ou palmou a “massa” de todos nós, ou então, tinha “matite”… Sugiro que a Procuradoria-Geral da República inicie um sério processo de investigação, para apurar a proveniência desses dinheiros que os “ofendidos de agora” querem fazer parecer ter conquistado de forma honesta e laboriosa» in Justino Pinto de Andrade

Gil Gonçalves

Sem nenhum apoio – o único pendente é a desagregação da fossa abissal entre alguns fanáticos pelos recursos petrolíferos e diamantíferos, porque foram apenas eles que lutaram, se sacrificaram pela causa da libertação do povo angolano – a cidadã que ainda não perdeu a coragem de continuar, aceitar a sua angolanidade, embora se esteja marimbado para isso. Sempre omitida nos túneis do tempo da independência, a mamã, como todas, levantava-se muito cedo, antes da ópera dos galos. Nalguns dias, melhor, muitos dias, passava fome conforme decreto governamental e ia amealhando para sair da espécie de pardieiro do carente sol nascente que habitava. De vez em quando sonhava com uma do milhão de casas, e de outro milhão de promessas, mas logo desistia da ideia e sorria convencida como toda a gente de que era mais um embuste. Um estúpido engano porque não se construíam casas, partiam-se, logo não é com certeza construir um milhão de casas, mas destruí-las. Conseguiu umas chapas de zinco e despontou um tecto da dignidade que resta dos miseráveis que até estão proibidos de cheirarem o petróleo, sabe-se lá, podem enfeitiçá-lo. Pelo menos já não chovia dentro do casebre. Restava a prece para que não eclodisse chuva ciclonal. Ainda havia a grande preocupação das fortes tempestades da gatunagem, dos marginalizados pelos senhores do petróleo. E do mais dinheiro guardado vieram os tijolos e com eles se reforçaram as paredes do que já lhe chamavam apropriadamente lar. Já estava um casebre digno enquanto a quadrilha dos especuladores imobiliários lá não chegasse. Faltava a energia eléctrica que depois se solucionou recorrendo ao aluguer de um posto de transformação de mais oportunistas dignos defensores, seguidores das causas revolucionárias, dos anseios principais das populações. A arca congeladora, a geleira, e a ventoinha instalaram-se funcionais. A criançada, duas filhas e uma sobrinha órfã, os pais morreram da nova epidemia, os acidentes de viação que parecem querer ultrapassar as vítimas da guerra ainda teimosamente fresca. As crianças levantavam-se alegres, sorridentes banhavam-se e em seguida lutavam na mesa e manjavam a principesca pobreza. Quando as economias deram para a televisão e uma aparelhagem, então a felicidade instalou-se definitivamente. Repentinamente o casebre transformou-se num palácio sem presidente. Os chulos e as chulas habituais disfarçados de amigos e amigas, prestavam vassalagem afinando que vinham em visita, porque: «Como vocês nunca vem nas nossas casas, vamos nós às vossas. Estamos a cobrar e vocês a pagar» e invadiam a nobreza da mamã que mais parecendo uma castelã, fazia jus, envaidecia-se:
- Estejam à vontade, sentem-se, comam e bebam. Não estamos assim tão mal.
E a visita queria saber mais, assim como pretender adivinhar como é que ela conseguiu.
- Mana, a vida corre-te mais ou menos, apesar dos que ainda teimosamente nos governam desejarem o nosso fim. Querem a cidade, Angola só para eles, querem tudo.
- Sim, é verdade meu mano. Estou a andar bem… mais ou menos desde que consegui um lugar no Roque.
- É Mana, eles também querem esse espaço, parece que vão lá construir outro aeroporto porque aquele de Viana já não dá. Nada lhes dá, já têm o petróleo, os diamantes, as terras, os kumbus, a corrupção… e mesmo assim não se satisfazem, querem-nos varrer tudo, aliás já nos varreram.
- É verdade mano, parecem mais vampiros sedentos de sangue, e nós somos as suas manadas. Este nosso futuro é vulcões que eles semeiam convencidos que isto vai andar assim eternamente.
- Olha Mana, aqui pela cidade e arredores onde há terrenos com construções ou não, eles andam com os olhos neles. É uma grande quadrilha arregimentada por marginais brasileiros, portugueses e chineses. Cantam-nos que estão aqui para nos ajudarem a reconstruir Angola, mas é mentira deles, é para nos roubarem tudo, já nos roubam as nossas… terras.
- Mano, sinto que esta nossa Angola vai outra vez acabar muito mal.

E os dias não passavam porque já não os havia, isso era coisa do antanho. O que passeava, continuava e mandava muito bem eram os dias da miséria que avassaladores proclamavam o destino sem final. E o mano veio de visita surpresa, de prevenção e avisou:
- Mana, uma manada dos afundadores da nação aproxima-se. Andam a numerar as casas, dizem que não são, intitulam-nas de casebres. Casas só eles podem ter e mais ninguém. Esta e as demais não lhes escaparão.
- Mano, eles fazem-nos assim sofrer porquê? Porque são tão maldosos, tão infernais. Esses não são pessoas, só querem o nosso mal.
- É verdade Mana, eles até quando passam por nós olham-nos com tanto desprezo que até parece que o lixo para eles tem mais valor.
E aguardaram o dilúvio humano e ele chegou. Primeiro com uma imensa coluna de pó aterradora que parecia quase o fim do mundo. Era um exército motorizado e de arsenal militar equipado. Executavam como que uma carga de cavalaria pesada. Como num jogo de futebol que sendo uma equipa fortíssima e a outra fraquíssima usavam de mil e um cuidados. Equipa prevenida é a melhor arma para combater o inimigo. A arrogância dos fortes com o dinheiro do petróleo festeja a desgraça alheia, arrasa a equipa fraca. Não se pode dar confiança a analfabetos pois que o negócio urge, e onde se intromete o dinheiro governamental é a destruição populacional.
E a nuvem de poeira aumentava, aproximava, como a visão final dos cavaleiros do Apocalipse. Os soldados da destruição, os garantes, guardiães da Angola vendida desembarcaram dos seus veículos bélicos. E do objectivo a abater aproximaram e ultimaram:
- Ainda por aqui?! Então não cumpres as ordens, és muito indisciplinada!
- Mas afinal o que é que se passa, tanta arma e descomunal exército só para derrubarem um casebre?
- Eh pá, esta gaja está muito armada. Atenção pelotão da destruição dos casebres, AVANCEM!!! FOGO!!! Porra! Fogo não, camartelo!
- Manos, por favor deixem-me só tirar…
- … Já sabemos essa cantiga de cor e salteado. A televisão, a geleira, a arca, a aparelhagem…
- … Não, não, por favor… são as crianças que estão lã dentro, vão matá-las?!!!
- Não queremos saber, cumprimos ordens do Ordens Superiores!
- Oh! Meu Deus! E quem é esse Ordens Superiores?!
- Ninguém sabe quem é… é o nosso deus, e por isso ele está sempre invisível, invencível no meio de nós.
E os zelosos cumpridores das Ordens Superiores, arrasaram tudo, não se importando se no interior do casebre estavam crianças a dormir ou não. A sua missão é destruir tudo, inclusive vidas que não têm nenhum valor. Estão em jogo grandes interesses internacionais, e por isso mesmo a FAMÍLIA não pode perder tempo com coisas insignificantes. Que valor têm a vida de crianças? Apenas o nascer e morrer.
Próximo, habituados a estes desvarios, jovens alienados pararam o seu carro, abriram-lhe as portas e colocaram a música no som máximo, até não dar mais. Fiscais aproveitaram-se da refrega e pretextando Ordens Superiores ainda e sempre em vigor, espoliaram algumas zungueiras. Hoje o negócio foi-lhes extraordinariamente rendoso, se fosse assim todos dias. Jovens montados nas suas motos faziam estalar os ouvidos com os escapes livres na maior barulheira possível. Alheios a tudo isto, os zelosos cumpridores da lei fingiam ignorá-los, porque estes gajos são filhos de peixe grande, e não convém arranjar problemas com os chefes, são muito amigos, usufruem do compadrio.
E a Mana vendo Angola fugir-lhe debaixo dos pés, já não é dos angolanos, libertou do mais profundo da sua alma o sentimento de desânimo desta independência outra vez só para escravos.
- Que o dinheiro não tem cor?! Tem sim senhor! Tem a cor do petróleo e dos diamantes, têm a cor da miséria e da corrupção. Ah! Como é tão bonito viver sem energia eléctrica e sem água. Ah! Como é tão bonito ver os nossos queridos governantes ordenaram selvagens destruições dos casebres dos idiotas sem petróleo, para depois construírem os seus complexos turísticos, e neles empregarem estrangeiros desempregados e angolanos na recolha das sobras dos seus repastos. Ah! Como é tão bonito ver os nossos governantes tão inchados de dólares transportados nos oleodutos bancários dos mercenários. Ah! Como é tão belo viver no desemprego e ver os estrangeiros, bwé de chineses, como se fosse toda a China. E os estrangeiros da vanguarda corrupta comerem, beberem à farta e lançarem-nos olhares de desprezo, como se fossemos lixo. Têm razão, já o somos. Ah! Esta independência que nos persegue e que tudo nos tira e na morte nos desconsola. Ah! Como é tão exuberante ver e ouvir este reinado falar dos seus negócios pessoais, impessoais, familiares, pois que Angola é toda deles. Não sabem?! Já privatizaram o Mussulu e a sua população que se afundam. No Wako-Kungo as populações espoliaram-nas e obrigaram-nas a refugiarem-se nas montanhas, como fugitivas de um grande maremoto. Já não são angolanos, são montanheses. E no Lubango o governador – parecendo comandante de um campo de extermínio – decerto diplomado pela universidade da actual conjuntura – está a enviar as populações para uma espécie de câmara de gás sob o olhar manhoso ainda de Lenine. Ah! Como é tão bonito ver dos palacianos condomínios, devidamente protegidos pelos exércitos particulares, sentir, apreciar o desenvolvimento económico da miséria. Da estrangeirada que rouba impunemente as terras milenares dos autóctones apenas porque são angolanos. Ah! Como é tão bonito ver Angola entregue, vendida, empossada pelos estrangeiros. Ah! Como é tão bonito ver a juventude tão sabiamente instruída nas universidades da delinquência tão violenta. Ah! Como é de beleza tão invulgar ver Luanda e tudo o que resta das cidades de Angola libertas de mwangolés, porque com eles Luanda fica feia, tudo fica tão medonho, e ao enxotá-los para bem longe, os estrangeiros e os falsos angolanos viverem numa boa, afastados dos mwangolés imundos, tão porcos, tão chatos, tão animalescos. Ah! PORRA! Fora com esses porcos! Ah! Como é tão horrível ver as mamãs nas ruas, escorraçadas pela polícia e similares, humilhadas, porretadas, até a miséria dos seus haveres confiscados apenas porque ousam lutar para não morrerem de fome. Venderam Angola aos estrangeiros com os nossos corpos incluídos. Eles vão chegar e nos escravizar.

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