domingo, 28 de agosto de 2011

Uma sentença que cheira a “gasosa”


Proeminente personagem das sociedades modernas, o “Xico-esperto”, em geral, parece estar vocacionado para um desempenho brilhante num futuro em que os valores morais já em estado avançado de depravação, continuarão a se desmoronar e o que conta é o faz-de-conta. Esta ideia moderna tem vindo até nós, pobres angolano, em linha directa da classe política, não só de Angola, mas do mundo inteiro, onde se acotovelam os “Xicos-espertos” em busca de uma única coisa: dinheiro, money, graveto, petróleo, cacau, milho, bufunfa, mais nada. Uma espécie de repetição no funcionamento social, da teoria do funcionamento cerebral do grande psiquiatra Edmund Freud, defensor da ideia de que todos os nossos actos humanos são ditados por impulsos sexuais, isso, ou coisa parecida. Na vida social o impulsionador é o kumbú e a decorrente aparência por ele possibilitada.

António Setas

O “Xico-apressado” da nossa história é o filho mais velho de uma família burguesa da sociedade angolana, bem-educada. São cinco irmãos, Edna Rosária, João Manuel, Laurinda Clara, Ivan Júlio e António Sérgio, filhos de Sérgio Salvador de Oliveira Freitas e Maria de Jesus Pereira.
Em 1992, por altura das eleições, incertas, e o repentino surto da guerra total, depois da “guerra de Luanda”, os mais-velhos dessa família decidiram tomar providências no que dizia respeito ao futuro dos seus filhotes. O pai abalou para Portugal com quatro dos cinco filhos, dois deles ainda menores, e em Luanda ficou o primogénito, promovido pela ocasião a “cabeça de casal” e gestor de bens familiares existentes em Angola, a ajudar e, digamos, a explorar os adquiridos e a guardar a casa familiar.
Durante três anos tudo se foi passando normalmente até ao dia em que, em 1995, faleceu a mãe, dona Maria de Jesus, que deixou como herança alguns bens, entre os quais uma casa, rés-do-chão e primeiro andar, na província de Benguela, cidade do Lobito, Avenida Dª Maria II no Bairro da Restinga, inscrito na Matriz Predial nº5492.
O filho mais velho do casal é o João Manuel Pereira Guerreiro e é ele o Xico-esperto desta história que irá tomar, com o passar do tempo, curiosos contornos contraditórios, numa espécie de repetição de um guião, perfeita e desgraçadamente natural no nosso foro jurídico, no âmbito do qual, gafes não é o que tem faltado.

Uma venda à moda de cá
No ano de 2000, aquilo que devia ter sido uma persistente e muito forte tentação, a meter-se na cabeça e a assaltar o bom senso ético do Manuel João, acabou por ter ganho de causa, este fraquejou e acabou por ceder ao seu encantamento, quer dizer, à perspectiva de um enriquecimento rápido e ilícito.
Aproveitando-se da ausência do pai e da bonomia da mãe, começou a vender «(…) tudo o que pôde, alugando o prédio urbano acima mencionado, sem de forma alguma notificar ou avisar das suas intenções a nós, seus co-herdeiros», como se exprime António Sérgio numa recente missiva de recurso datada do 3 de Março de 2011, enviada ao Senhor provedor de justiça, Dr. Paulo Tchipilica.
Por que meios e palavras doces o Manuel João conseguiu convencer do bem fundado das suas engenharias a sua mãe, dona Maria de Jesus, não sabemos, mas certo é que ele pôde levar avante os seus projectos de agir sem dar cavaco a ninguém, levando mesmo a sua audácia ao ponto de decidir celebrar um contrato de compra e venda da referida propriedade, deixada como legado da mãe aos seus cinco filhos, com o senhor Carlos Saturnino Guerra de Sousa e Oliveira. E, uma vez mais, sem notificar os seus irmãos nem o pai, ou os avisar das suas intenções.
Lançado assim o negócio, mal e insidiosamente, eis que os contratantes se esquecem de passar pelo notário a fim de autenticar o acto, que, em função dessa falha, passava a ser válido apenas para os dois “comparsas” e não válido, segundo o que está consagrado na lei da República de Angola, para terceiros nem para os quatro irmãos que tinham sido ludibriados nesta acção.
Assim, uma vez que a herança contemplava de igual maneira os cinco irmãos, vai de si que este negócio nem negócio era. Pela força da lei cujo respeito se impunha e não foi respeitado, o acordo passado entre o comprador e o vendedor apenas abrangia a responsabilidade de um dos cinco irmãos, o João Manuel. Resumindo: o negócio só podia ser concluído à margem da lei, senão, o mais que o senhor Carlos Saturnino podia, eventualmente, exigir, seria a titularidade de 1/5º do prédio, comprado a um só dos cinco herdeiros co-proprietários. Elementar. Elementar, por certo, mas não para o juiz do Tribunal Provincial do Lobito, como veremos mais adiante.
Voltando ao negócio em questão, mesmo assim, ele foi avante. O senhor Carlos Saturnino pagou o montante exigido pelo João Manuel, 76 mil dólares, este agradeceu e fez do dinheiro o que quis.
Entretanto, em Portugal, atarefados perante as contingências diversas que são o cunho de qualquer emigrante, os restantes membros da família Pereira-Freitas, o pai e os quatro filhos, reagiram rapidamente. Para começar, introduziram um pedido de anulação da competência de “cabeça de casal”, atribuída tacitamente, segundo parece, a João Manuel. Passou então a Edna Rosário a assumir essa função. Em seguida, pressão foi feita em tudo quanto era foro da legalidade, para recuperar o bem imobiliário alienado indevidamente pelo João Manuel. E, para evitar qualquer súbita ocupação dos locais pelo infeliz comprador, a casa foi a certa altura alugada a terceiros, mais precisamente a um denominado Luís Borges.
Nisto, o irmão indelicado, posto entre a espada e a parede, isto é, entre a sua família e o senhor Carlos Saturnino, cada um do seu lado a exigir entrar na casa que ambos reivindicavam como sendo sua, tentou por sua vez, tanto quanto possível, adiar a entrega do imóvel que ele tinha acabado de vender, mediante um conjunto de manobras dilatórias associadas a uma evidente má-fé. Vendo-se cada vez mais em apuros, a páginas tantas vemo-lo a enveredar pelo caminho oposto àquele que ele tinha seguido até então, ao tentar por sua vez e a todo o custo, anular o contrato de venda com o senhor Carlos Saturnino. Mas este, por sua vez, cada vez mais agastado com os novos contornos que o “negócio” ia apresentando, intentou uma Acção Especial de Entrega de Coisa junto do Tribunal Provincial do Lobito.
A “Coisa”, neste caso era a casa da Família Pereira-Freitas, na Restinga do Lobito, vendida, vendida por João Manuel ao senhor Carlos Saturnino num evidente atropelo à lei.

Golpes de teatros
1º golpe) A justiça, Santo Deus, vai mal. Encurralada e manietada entre os poderes Executivo e Militar, vai-se deixando “ping-pongar” entre um e outro, sem grandes hipóteses de se referir rigorosamente às leis da República.
No caso em apreço, essa Acção Especial de Setembro de 2007, a cargo da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial do Lobito, simples, clara, sem implicações políticas nem sociais, resultante duma burla na venda de uma “Coisa” que não pertencia que por 1/5º ao vendedor e no seguimento dum contrato de promessa de compra e venda nulo, nesta conjuntura, não passava certamente pela cabeça de ninguém que o juiz da causa pudesse pôr de lado a burla e tivesse alguma dúvida em recusar a entrega da mesma ao espoliado Carlos Saturnino, sendo imperativo, no entanto, abrir um subsequente processo, no penal, contra o vendedor João Manuel, na medida em que o seu comportamento é criminoso. Mas não, senhor, o juiz da causa não pensou assim
O Juiz da causa, Dr. Adelino Cussenha, lavrou no dia 20 de Setembro de 2007, uma sentença incompreensível, parcial e a cheirar a “gasosa”. Aqui a apresentamos ipsis verbis:
«Assim, vistos os autos e as disposições legais invocadas,
JULGO
Procedente e provada a presente Acção, e, em consequência disso
CONDENO
O Réu João Manuel Pereira Guerreiro a entregar ao Autor Carlos Saturnino Guerra Sousa e Oliveira, a residência sita à Avenida D. Maria II, nº70 – R/C e 1ª Andar, Bairro da restinga, cidade do Lobito…………. (…).»

Extraordinário!
A Acção, de facto, é procedente, mas o que está provado é que houve burla, não venda. E uma casa não vendida (faltam 4 assinaturas no acto de venda para haver venda) nunca pode ser entregue a alguém que prove que deu dinheiro por ela!
Quanto às disposições legais invocadas, elas partem todas do pressuposto de que não houve burla e de que a promessa de compra e venda é válida. Ora a realidade é muito precisamente o contrário disso mesmo!
2º golpe) Indignado com esta sentença, Manuel João no Tribunal introduz recurso. O problema é que o advogado que o representava, Dr. Pedro Sinde, deixara por motivos que ignoramos de representá-lo. Até aí, vá que não vá. Mas se acrescentarmos que esse jurista passou a representar o senhor Carlos Saturnino, o menos que se possa dizer a esse respeito é que, para além das bofetadas sem mão dadas aos valores morais e deontológicos, parece-nos que tal comportamento também é uma bofetada à lei. De notar, enfim, que foi por altura deste julgamento que os co-herdeiros de João Manuel alugaram a casa ao senhor Luís Borges, que, segundo eles, sempre teve conhecimento de todas as acções que decorriam no Tribunal do Lobito.

Recursos contra paradoxos e o fim da picada
Sem advogado, João Manuel recorre aos serviços do Dr. Fernando de Almeida Gomes que interpõe um recurso de Revisão da Causa no Tribunal Supremo (proc.66/08).
Os co-herdeiros, que já tinham feito uma reclamação em 2006 (proc. 23/06) ao tribunal Supremo de Luanda, decidem mudar de advogado, depois de o Dr. Rufino Narciso, que os defendia nessa altura ter omitido nesse recurso o valor real do imóvel, fazendo com que o dito processo fosse de novo recambiado para o Tribunal do Lobito.
No dia 25 de Novembro de 2010, os co-herdeiros, defendidos pelo Dr. Paulo Rangel, contrapõem ao processo 23/06 supracitado, uma acção declarativa de condenação a Carlos Saturnino Guerra de Sousa e Oliveira e João Manuel Pereira Guerreiro.
Enfim, no dia 12 de Janeiro de 2011, no Tribunal do Lobito, o juiz da causa, Dr. Adelino Cussenha emitiu uma ordem para que a casa seja passada para o nome de Carlos Saturnino Guerra de Sousa e Oliveira.
O fim da picada!?...
Não, ainda não. Restava o Provedor de Justiça, o Dr. Paulo Tchipilaca. E foi a essa entidade que os co-herdeiros se endereçaram numa última súplica para que justiça possa ainda ser feita. E neste ponto, a questão que se põe é de saber até que ponto o Dr. Paulo Tchipilica tem poder de decisão para impor uma nova sentença que reponha no seu devido lugar um juiz que fez um erro evidente e tão doloso para toda uma família. Mas, como errar é humano, que não se atirem pedras.
O senhor Carlos Saturnino, que entrou numa jogada de grande risco, sabendo muito bem o que estava a fazer, não me parece que mereça tratamento especial. Que se entenda com o João Manuel para ser reembolsado, e, caso não for, que o impugne em tribunal. O João Manuel, autor de toda esta salgalhada, devia devidamente condenado, e os co-herdeiros deviam recuperar a sua casa.
Se ainda for possível.





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