quarta-feira, 18 de maio de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (fIM). António Setas


Nota 4: a bênção das praias.
«No dia que se seguiu às preces todos os mais velhos do Kwanza, o Kilamba-Kiaxi, os dois umbanda, e muitos dos participantes presentes no Kwanza, foram ao Mussulo de visita ao dilombe do nosso Kilamba. O dilombe fica à beira de uma vasta clareira e é protegido por um imbondeiro, desses muito velhos, tão grande que não dá para ver a sombra dos que estão à volta. É a ‘‘casa’’ da kyanda, soba de todas as yanda do Mussulo e de todas as praias, mesmo as do continente, até à ponta da ilha de Luanda. Foi aí, nesse território sagrado, onde não pode entrar homem sem acompanhamento do Kilamba - nem mosquito entra!! É verdade! -, que se reuniram os oficiantes e os devotos, tudo gente muito velha! Durante o dia o Kilamba rezou, e todos ouviram com muita devoção e respeito, mas quando veio a noite chegaram as visitas, habitantes das cercanias e dos acampamentos de pescadores. Quase todos comeram e beberam bem. Os mais jovens cantaram e dançaram até à meia noite. Depois o convívio prosseguiu até de madrugada, quando chegou a hora de todos os visitantes se retirarem. Pela manhã benzeram-se todas as praias que dão peixe. O Kilamba-Kiaxi do Kwanza meteu-se pela contracosta, o do Mussulo seguiu pelo lado das praias da baía, ambos acompanhados por alguns mais velhos. Nas suas rezas do ixi-ni-mavu, como manda a tradição, atirando regularmente moedas e bebidas para o solo. Nessas caminhadas que pareciam não ter fim, encontraram-se duas vezes, primeiro na lagoa do Pinho, zanga rya ponda, mais tarde na zanga rya nzenze. É a maneira tradicional de homenagear as yanda das lagoas do interior do Mussulo. Finda a bênção das lagoas, os Ilamba separaram-se, e reencontraram-se uma última vez no território sagrado de onde tinham partido, a casa do kyanda, Soba de todas as yanda do Mussulo, à beira do dilombe do nosso Kilamba. O ambiente desanuviou-se, e foi festejada a paz reencontrada entre os axiluanda e as yanda.

GLOSSÁRIO

Alambamento - Dote oferecido pelo noivo à família da noiva.
Ambundo - Território extenso à volta do rio Kwanza. Situado entre os territórios Lunda-Tchokwe a Leste, Bakongo a Norte e Ovibundo e Ngangela a Sul. Povo desse território.
Bakongo - Ver Reino do Kongo
Bué - Muito, grande quantidade.
“Calcinhas” - Autóctone assimilado, com costumes portugueses.
Cassule - O mais novo dos filhos de um casal.
Destacado(a) - Agentes, que no comércio do peixe têm acesso directo ao produtor.
Dikoso - Líquido lustral, de purificação, na religião animista.
“Enfeitada” - Diz-se de uma “mesa” na qual o “dono do óbito” depositou uma quantia de dinheiro para relançar o consumo de bebidas.
Ijila - plural de Kijila, que significa interdito.
Ilundu - Espíritos dos antepassados.
Imbanda - Plural de Kimbanda, que designa aquele que cura, ministro do culto dos antepassados.
Jingwinji - Bagre.
Kalemba - Marés violentas com mar muito agitado.
Kaluanda - Natural de Luanda.
Kamba - Amigo, bom camarada.
Kanda - Termo kikongo designando o conjunto dos descendentes de alguém por via matrilinear.
Kazumbi - Alma do outro mundo. Fantasma.
Kikongo - Ver Reino do Nkongo.
Kilamba ( plural, Ilamba) - Intérprete das yanda, aquele que dirige o seu culto. (Òscar Ribas). Exorcista.
Kimbo - Aldeia.
Ki mona mesu - Estórias baseadas em factos reais, mas nas quais se ultrapassam as leis da natureza e se atinge o maravilhoso. Nestas narrativas faz-se muitas vezes alusão à relação entre vivos e mortos, e práticas fetichistas.
Kituta – Génio da naturza (Plural, ituta).
Komba - O varrer das cinzas. «Oito dias decorridos sobre o passamen- to do finado é varrida superficialmente toda a casa do mesmo, e o lixo daí resultante despejado numa encruzilhada, onde é vertido o dikoso - mistura de bebidas - para apagar as cinzas. A acção é repetida, em princípio, oito dias mais tarde»... (Óscar Ribas). Ritual variável.
Kumbu - Dinheiro.
Lumbu - Conjunto dos descendentes de um determinado antepassado por via patrilinear.
Mbanza - Cidade, capital.
Maka - Problema. Assunto litigioso.
Malanjinho - Oriundo de Malanje ou da província de Malanje.
Mesa - Ajuntamento de pessoas ou de vitualhas implicando consumo ritual (Rui D. de Carvalho).
Mujimbo - Boato.
Muadié - Homem, senhor.
Mundongo, Mbundo - Ver Ambundo.
Musseque - Literalmente terra vermelha. Designa os bairros que cresceram à volta da “Baixa” de Luanda, quase todos ocupados por gente muito pobre.
Ndongo - Embarcação estreita e comprida feita de um só pau. Canoa.
Ngola - Rei Mbundo.
Nzambi - Deus banto
Quartel - Sede de um grupo de Carnaval.
“Rei dos peixes” - Kituta oriundo não dos rios, mas do mar.
Reino do Kongo - Vasto território que se estendia muito para além do Norte do rio Zaire, englobando as províncias angolanas de Cabinda, Zaire, Bengo, Uíge e noroeste da Lunda - Norte, até ao norte da província de Luanda, entre o rio Kwango e o mar, essencialmente habitada por povos das etnias kikongo e bakongo.
Sango - Refeição que tem lugar após o funeral.
Solongo - Natural do Soyo.
Uanga - Feitiço.
Umbanda - Arte de praticar a adivinhação e de curar (Óscar Ribas). Aquele ou aquela que a pratica.
Yanda - Plural de Kianda, que designa o Espírito das águas . Vocábulo associado, abusivamente, às sereias.
Ximbicar - Fazer avançar uma embarcação com o auxílio de uma vara (bordão) cuja ponta se apoia nos fundos de pequena profundidade.

Pedido de inserção

Dedicatória:
Às minhas filhas, Lia e Elsa de Lacerda Setas.
Às minhas angolanas, Márcia e Joana.
Às mulheres que amei, a minha mãe....
E a Ruy Duarte de Carvalho, a quem devo todos os dados etnográficos desta narrativa, retirados do seu livro ANA A MANDA OS FILHOS DA REDE.

Na contra capa:
“É verdade que o progresso é uma boa coisa, trouxe-nos o automóvel, a electricidade, essas máquinas todas, a televisão, os computadores, a varinha mágica, em suma, um certo prazer e conforto. Mas também trouxe um afastamento do que realmente somos. É que, com todas essas invenções, fomos levados a olvidar que não passamos de simples animais, racionais, mas animais. E o resultado está aí, numa corrida frenética para a frente, de mãos abertas para o cesto de ovos do progresso, sem olhar a estragos. Chegaram os automóveis, deixámos de dar passeios a pé e mais depressa definhámos; chegou a televisão, deu-nos para passar horas a olhar para ela e esquecemo-nos do jantar, dos filhos, dos parentes e dos amigos, esquecemo-nos de conversar e de conviver; chegou o computador...agora já posso fazer coisas formidáveis é verdade, mas há quem passe não são horas, é o dia inteiro diante do écran. E com a Internet até posso namorar com a Yong Tchi, que é chinesa, mora no Japão e eu nunca vi !... Isso é vida ?!!
Quanto mais vou para velho mais perto me sinto das minhas raízes, ao recordar as lições que me deram os filhos do Papá dya Kota, o tio Mbala, o kota Kiala e os meus pais. E vivo com elas no calor que me vai nos dentros e de que muito me orgulho, sem me preocupar com etiquetas, preconceitos e ritos, mas sentindo-os em mim, não sem um indefinido temor, ao pensar que corro o risco de seguir o caminho das tartarugas gigantes, dos elefantes e das baleias, assim como o de milhares de espécies animais e vegetais ameaçadas, isto sem falar das que já desapareceram da superfície da Terra, no final de contas por obra do progresso. Contudo, sou um homem, e creio que sei pensar e transmitir o que penso. Continuo a ir para o mar e a pescar. Viro-me para o Nucho e vejo-lhe nos olhos o brilho dos meus olhos, que vêem nos dele o brilho que eles tinham outrora, quando eu ia pescar com o tio Mbala. O Nucho será pescador, “akwa zanga” como o pai, mau grado o nosso Bairro dos Imbondeiros ter sido invadido por gente de “fora” e ser hoje um musseque. E os meus filhos, estes e os que vierem, serão nutridos pela mesma seiva da raiz antiga. Religiosa ou profana pouco me importa, o que conta é eles ficarem a saber quem são e de onde vieram. Progresso, computadores e tudo o mais, sim senhor, mas primeiro a cabeça a funcionar para salvar o que ainda há para salvar. A começar pela nossa identidade”.

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