segunda-feira, 16 de maio de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (13). António Setas


Mas, voltando à história do rei Nezumba, tínhamo-lo deixado a braços - maneira de falar - com uma grande tristeza, causada pela vergonhosa figura que tinha feito na presença do seu povo, ao ser obrigado a reconhecer que a raiz da nsanda tinha poderes que ele nunca poderia alcançar com a sua, de tamborineiro A boa pergunta que se poderia fazer é a seguinte: Mas como é que ele, ex-príncipe Mukongo e trineto do grande Nezinga, teve a ousadia de renegar a ancestral árvore sagrada, a nsanda, a favor da nsaka dya ntadi, do tamborineiro? Resposta certa a esta questão não existe, mas o próprio nome da árvore que ele passou a adorar quando tomou o poder no Soyo, com a sua partícula ‘‘ntadi’’ que quer dizer dinheiro em língua kikongo, é uma boa pista. Nezumba era de facto sucessor longínquo do grande Nezinga, cuja aura imensa não era alheia à circulação do dinheiro no reino do Kongo; acontece que ele também teve contactos com os mouros e também ficou perturbado com o aparato e as lendas desses ricos homens do Norte de África, ao ponto de ficar obcecado, e daí talvez lhe ter vindo à mente a ideia de considerar o ntadi do domínio religioso. De resto, a sua perturbação mental manifestar-se-ia mais tarde, no trágico fim que teve.
Depois do adivinho Kanzi se ter ido embora, Nezumba decidiu organizar uma grande festa em honra do seu irmão, Yobo dya Mvika, que ele apresentou ao povo Solongo como passando a ser, a partir desse dia, seu sucessor. Espanto!...No final da festa pediu aos seus súbditos que o acompanhassem, como que em peregrinação, ao lugar onde Kanzi ya Pakala tinha cavado o seu primeiro poço graças à raiz da nsanda. Uma vez chegados ao local, o rei fez uma nova surpresa ao povo, meteu-se dentro do poço e anunciou que desejava ser completamente coberto de terra até ficar só com a cabeça de fora. Quando ficou completamente enterrado até ao pescoço, ordenou que de futuro nunca mais se corte a cabeça de ninguém no reino do Soyo. A razão era simples, sentia-se culpado por ter decapitado tanta gente por causa de uma raiz que não era assim tão sagrada, pois a raiz da nsanda tinha poderes que a sua não tinha. Nesse caso, a única pessoa que merecia ser decapitada era ele, tinha-se enganado e tinha enganado o povo. E, porque lhe parecia ser justo, ordenou que lhe cortassem a cabeça!! Ninguém acreditou que fosse possível tal atitude, mas era uma ordem do rei. Repetiu-a em altos gritos, era uma ordem!... E cortaram-lhe a cabeça. Que mais tarde foi posta em exposição na mbanza durante alguns dias, à semelhança do que era costume fazer com os bandidos condenados à morte!
Rei morto, rei posto. Viva Yobo dya Mvika!...Mais devagar, sucessão tão súbita e inesperada deixava pendente um problema grave. É que até essa data reinava no Soyo a tradição Solongo de sucessão por via paterna, e ao herdar o poder do seu irmão, Yobo instaurava a lei do Kongo de sucessão matrilinear. Além disso, nesse tempo havia dois Soyo, o de Cima e o de Baixo, e com a morte de Nezumba deu-se a reunificação das duas metades. Enfim, uma confusão monstra. Quem não gostou foi o filho de Nezumba, Kimpa dya Mvika, legítimo herdeiro segundo a tradição Solongo. Revoltou-se, levantou armas, e conseguiu derrotar e expulsar o tio do Soyo, que fugiu para o Sul, atravessou o rio Loge, devia ter chegado ao Tabil e ao Mussulo, e depois não se sabe, nunca mais se ouviu falar dele. Mas das kandas que o acompanhavam, uma pelo menos passou o rio Dande. Sabe-se que a dada altura flectiu para Leste e em seguida para Norte, até chegar a Mbanza Kongo. Presume-se que tenham encontrado pelo caminho destacamentos avançados das tropas de Ngola a Kiluanji kya Samba, sempre com um olho virado para a ilha de Luanda, mas ainda sem forças suficientes para a acometer. Fosse assim ou assado, chegaram os da kanda a Mbanza Kongo e foram recebidos pelo rei Nkuvu a Ntinu, que aceitou dar-lhes bom acolhimento em troca do pagamento de uma pesada multa em conchas caori. A kanda Mvika não era vista com bons olhos no reino do Kongo. Mudou de nome, passou a chamar-se Nsanda, do nome da figueira sagrada do Kongo, e o seu chefe prometeu pagar a dívida. E pagou, mas para levar a bom termo o pagamento, todos os homens tomaram as mulheres da kanda, esposas, irmãs e filhas, como escravas, e venderam-nas a mercadores luba, mbangala e árabes, evitando assim uma ainda mais horrível alternativa, irem todos eles, sem excepção, salvo os mais velhos, pelo mesmo caminho, a escravatura, como único modo de resgatar a dívida.
Passaram os anos, a kanda pagou, os homens lutaram e venceram batalhas ao serviço do rei. Mostraram-se corajosos e de palavra, raça tão rara nesse tempo como nos dias de hoje. Nkuvu a Ntinu apreciou ao seu justo valor tanto sacrifício e coragem e confiou-lhes uma missão da mais alta importância: comandarem uma milícia real que teria por missão instalar-se na ilha e Luanda e defendê-la contra eventuais investidas das tropas do Ngola a Kilwanji kya Samba. Foram esses soldados do Kongo que os portugueses encontraram quando chegaram a Luanda a bordo das caravelas de Diogo Cão.
Nota 2: a origem da kyanda
«Nzámbì, depois de ter criado a terra (ixi) e o sol (mwánià), a água (ményà) e o fogo (jìkù), deu forma ao homem e à mulher utilizando estes dois últimos elementos. Ao casal primordial a transcendência divina atribui os nomes de Sámbà e Mawézè (ou Nawézè). Estes tiveram uma grande progénie de ambos os sexos. Sendo irmãos não se podiam casar nem fazer sexo. Isso fez com que, depois de acordo passado com os progenitores, Nzámbì se tenha decidido a purificá-los. Para tanto, os filhos do casal deveriam na madrugada do dia seguinte atravessar o rio Kwànzà. Chegada a hora aprazada, apenas dois irmãos acordaram ao canto do galo e cumpriram com o estipulado, isto é, atravessar o rio. Quando chegaram no outro extremo (a riba oposta) estavam completamente esbranquiçados e transformados em «seres maravilhosos», e Nzámbì atribuiu-lhes os nomes de Mpémbà e Ndèlè. Decidiu ainda que, doravante, estes deveriam passar a viver nesse mundo que alcançaram, isto é, o mundo harmonioso das águas, da humidade, do brilho e da luminosidade, da brancura e da felicidade absoluta. Os outros irmãos, que não cumpriram com a ordem estipulada, passaram a viver definitivamente em terra, com os seus problemas e angústia.
Nota 3: o kakulu
«Havia uma ilha ali perto da Barra do Kwanza, que era a do Tumbu, íxi yala mu kaxi ka Kwanza, a ilha no meio do rio, onde se realizava o kakulu. O Kilamba-Kiaxi, o único que fala com o ‘‘rei dos peixes’’ e com os espíritos as águas, as yanda, também chamadas ituta, ou iximbi, chegava à ilha a bordo do ndongo, acompanhado durante todo o trajecto que fazia ao longo do rio por muitos outros ndongo apinhados de gente que ia assistir ao kakulu. Abençoava-os com água do rio, que derramava sobre eles com um ramo de mulemba. Quando chegava à ilha, esperavam-no os idosos e os chefes das terras do Kwanza, mas ele ignorava-os e logo se dirigia para o sítio onde estavam dois anciãos ao lado de duas bacias esmaltadas com o dikoso, a água lustral, na qual ele mergulhava o ramo de mulemba e então sim, benzia todos os chefes presentes. Em seguida entregava o ramo da mulemba a um dos anciãos, um umbanda, que por sua vez benzia toda a gente que se agrupava no terreno. Feito isso, o Kilamba retirava-se. Caminhando sempre ao lado do rio ia ter a uma grande clareira onde se erguia uma mulemba centenária que protegia a cabana sagrada que ali estava, feita de ervas e vimes, o dilombe, onde ele iria descansar. Antes da noite cair preparavam-se as mesas para a cerimónia do dia seguinte».
No dia seguinte de manhã, o Kilamba-Kiaxi saía do dilombe com um chocalho numa mão e uma flauta na outra, acompanhado por um pequeno grupo de anciãos e, mais atrás, o umbanda, que ia benzendo todos por quem passava. E todos os que ali estivessem seguiam o Kilamba até à praia que dava para o rio, onde estavam expostas nas “mesas” - esteiras postas no chão - as oferendas destinadas às yanda, maluvo, cerveja de massambala, frutos secos, ananas, papaias, bolinhos e guloseimas feitas com mel misturado com óleo de palma, além das carnes, de porco e de vaca, com feijão e kikuanga, sem falar do jingwiji e do kakusu, os peixes sagrados, que se comeriam mais tarde durante o banquete.
O Kilamba avançava com o chocalho e a flauta na mão, e os que o seguiam cantavam, acompanhados pelos instrumentos dessa época, o hungu, os bumbos e os jisaxi, chocalhos iguais ao do Kilamba. Ao chegar perto do rio, este fazia badalar o seu próprio chocalho e todos se calavam. Silêncio. O Kilamba-Kiaxi ia até à berma do rio, ajoelhava-se e “falava” com as águas do rio, fazia a sua prece às yanda, lamentando o seu sofrimento, assim como o do seu povo, vítimas inocentes de guerras entre chefes, que a partir desse dia se uniriam, oferecendo então a paz merecida ao povo sofredor ; agradecendo Nzambi, todos os ituta, os ilundu, e pedindo perdão a todas as yanda, filhas de Kabala Kahombo, o homem, chefe das yanda do rio Kwanza, e de Kongola-Magya, a mulher, por ele, Kilamba do Kwanza, não ter conseguido fazer um bom trabalho, «Perdão, perdão a todas as yanda, por nos termo esquecido estes anos todos. Nós somos os vossos filhos, perdão para sempre». E durante toda a prece não se cansava de relembrar a eterna filiação a esse pais de todas as yanda, que só saem deste rio Kwanza. e lhes obedecem».
(Como quem não quer a coisa o meu pai salientava uma vez mais que o único kakulu verdadeiro é o do Kwanza).
«O ritual demorava horas, e o Kilamba-Kiaxi não parava de rezar, fazendo badalar o seu chocalho e tocando flauta, uma vez um, depois a outra, para chamar os espíritos, os génios do rio. E, ao chegar o final das preces, todos os presentes entoavam os cânticos tradicionais em coro. Só depois vinha o banquete, com jingwinji, kakusu, e uma enorme quantidade de iguarias e bebidas, por muitos dos presentes consumidas em excesso. Era assim».
Imagem: autores-p.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário