domingo, 4 de julho de 2010

So long Paulo, por ti choram os abutres


William Tonet & Arlindo Santana

Faz hoje exactamente uma semana - foi no dia 26.06.10 -, que faleceu, vítima de doença prolongada, o nacionalista angolano Paulo Teixeira Jorge, “o único dirigente do Bureau Político do MPLA sem negócio próprio”. Antes de ir mais longe, diga-se que esse predicado lhe valeu uma boa dose de animosidade camuflada no seio do partido, na medida em que o facto de ele não aceitar regalias sem nexo nem participar em golpes sujos de enriquecimento ilícito, suscitava o brotar de desconfianças mal camufladas por parte dos seus camaradas, que não tinham pejo em dizer entre eles que “o Paulo não é digno de confiança”, entendendo-se por aí que ele seria muito capaz de denunciar as tropelias cometidas de que se viesse a tomar conhecimento. Mais valia era evitar entrar em confidências de negociatas com ele.

Na prática, essa desconfiança incubada, e, como supracitado, mais ou menos camuflada, valeu-lhe pelo menos uma proposta de afastamento do partido, feita por uma designada “ corrente “conspiradora” que defendia a sua saída do “ÉME” pela porta do cavalo. JES recusou a sugestão, porque de facto admirava o homem, que conseguia ver nas situações mais difíceis, embrulhadas em nevoeiro espesso, saídas airosas e eficazes como se elas fossem de cristalina evidência.
A esse propósito, é de recordar a sua famosa entrevista a Manuel da Silva em meados da década de 1990, na TPA, a propósito da melhor maneira de o MPLA e o Governo de Luanda se oporem com eficácia às acometidas bélicas do Galo Negro. Nessa altura, a supremacia da UNITA no terreno parecia ser uma evidência e ainda não tinha chegado o tempo de aplicação de sanções E Paulo Jorge, numa frase, saiu-se com uma tirada comparável ao “Ovo de Colombo”, do grande navegador com o mesmo nome, ao serviço dos reis Católicos da Espanha. “É preciso isolá-lo”, disse ele, e explicou como, com aquela simplicidade do professor que revela ao aluno os mistérios das secantes, das parabólicas e dos logaritmos, finalmente tão acessíveis como o dois e dois são quatro!

Paulo Jorge… morreu não pobre, mas remediado. Nunca gostou de se meter em negócios. Segundo informações já divulgadas na imprensa, o seu “partido do coração”, e para ele o MPLA era sem tirar nem pôr só isso, achou por bem aqui há uns tempos atrás intervir financeiramente para reparar a sua casa. “Paulo, tu és figura alta do Estado, tens cuidar da tua imagem”!, diziam-lhe. Qual quê!, ao longo de toda a sua longa carreira sempre o vimos a guiar carripanas que nada tinham a ver com os luxuosíssimos jipões da maioria dos altos dignitários do Estado. A sua última Audi, já velhinha, “com uma pintura e uma revisão a fundo do motor, fica novinha em folha”, disse ele um dia ao seu amigo Fernando Teixeira “Baião”, que também já nos deixou, precisamente levado pela mesma doença que o vitimou.

A dignidade já não é o que era antes
A noção de dignidade faz parte das mais profundas e remotas incógnitas que existem e proliferam no seio da estrita comunidade dos homens políticos que se agitam nas mais altas e menos altas esferas do Estado.
Para efeitos de compreensão por parte dessas pessoas a que nos referimos como não fazendo a menor ideia do que é dignidade, tirando a que eles conceberam para uso e proveito pessoal, fabricada com vil metal e resquícios reciclados de ornamentos de fachadas mentais, relembremos-lhes que a expressão “ser digno” designa não só a verticalidade e o mérito assumido por tudo o que é executado, pronunciado e respeitado pelo detentor desse qualificativo, mas também a sua disponibilidade intelectual de reconhecer os seus erros.

Digno, portanto, é o homem, a entidade, a instituição, o Estado ou outra representação humana qualquer, que respeite a palavra dada, a promessa feita, os compromissos assumidos, as dívidas morais e materiais, a liberdade de outrem no seu senso mais alargado e tudo quanto se refira à harmonização do relacionamento entre humanos. Mas é, também, a capacidade e coragem de reconhecer os seus próprios erros e fazer, na vertical, o seu “mea culpa” Desgraçadamente, mais ou menos o contrário do que tantas e tantas vezes temos a infelicidade de presenciar no nosso país.

Este desabafo, virado para a noção de dignidade, vem a propósito de mais uma impensável manifestação de infantilismo político, obra de indivíduos indignos de figurar no evento aqui em foco, cinicamente organizado por eles em nome do misterioso conceito (para eles) de dignidade. Estamo-nos a referir à exagerada e empolada, não obstante ser justa, homenagem fúnebre ao camarada diplomata Paulo Jorge.
Mais uma vez os angolanos, sobretudo os que lutam realmente no terreno, todos os dias para que a anunciada e tão propalada reconciliação nacional seja um facto consumado, presenciaram com enorme surpresa a superlativa homenagem que o Estado angolano, por iniciativa do chefe do Executivo, consagrou a Paulo Jorge.
Ele, o Paulo, por ter sido um valioso patriota, teve direito a todas as honras, outros, tão valiosos como ele, mas do outro lado das trincheiras, nem sequer do nome se fala!

Ele, que era uma espécie de anomalia no meio dos anómalos, um filho legítimo do ideal do “ÉME” no meio de um ajuntamento de bastardos, servidores do Estado que não vêem no seus cargos que um instrumento para enriquecer rapidamente, ele, que mais não desejava do que ser útil longe dos holofotes de tudo quanto é mídia, que desde muito cedo se demarcou em sucessivas empreitadas ao abrigo de todas as funestas tendências apologistas da corrupção, ele, que, levado ontem para longe das luzes da ribalta, vemo-lo hoje, depois da sua morte, a ser incensado e levado aos píncaros da glorificação pessoal - doença endémica do nosso regime político -, numa grandiosa cerimónia fúnebre organizada por corruptos, inclusive por aqueles que tudo fizeram para o pôr no olho da rua, longe do MPLA, tirando raras excepções que se contam pelos dedos de uma mão e ainda sobram dedos, não era certamente isso que ele queria.

Paulo Jorge faleceu num sábado, e de domingo a quinta-feira da semana seguinte, foi levado, depois da sua morte, a protagonizar reportagens laudativas da sua pessoa, apresentadas em páginas inteiras no JA, durante manhãs inteiras, serões e telejornais inteiros na TPA, emissões inteiras na RNA, realizaram-se exéquias Nacionais, decretou-se feriado Nacional no dia 1º de Julho, pouco faltou para chamar o papa e beatificar o nosso bom Paulo Jorge!
O problema é que tudo isto cheira a espectáculo vazio de coerência.

Amigos e abutres, unânimes: “Um exemplo para todos nós”
Ao tempo da luta de libertação nacional, Paulo Jorge representou o MPLA em vários países (Egipto, Argélia, Congo, Cuba e Zâmbia). Foi secretario das Relações Exteriores no pós-independência e mais tarde ministro. Posteriormente exerceu o cargo de governador provincial em Benguela, sua terra natal. Em nenhum destes cargos ele se apropriou de projectos num primeiro tempo recusados para serem plagiados mais tarde, como tantas vezes fizeram os seus improvisados aduladores, nunca pela cabeça lhe passou receber comissões, e não tinha vergonha nenhuma de se apresentar dentro do partido, particularmente no seio do Bureau Político, como uma espécie de moralizador tão cinicamente respeitado como ignorado.Talvez seja por ele aparecer assim, como sendo um “santo” no meio de abutres, que estes, debruçados desde a Dipanda sobre a carcaça ferida duma Angola saída de várias guerras, choraram e continuam a dizer que choram a sua morte.

Imagem: http://www.portalangop.co.ao/




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