segunda-feira, 12 de julho de 2010

Dois textos do futuro livro de Domingos da Cruz


PREFÁCIO
O homem
Como era seu hábito quando a vida lhe corria bem, quero dizer, quando o seu “faro” de caçador de talentos o tinha levado a descobrir um deles, nesse dia de Maio de 2007, ou fins de Abril, já não me lembro, o Nvunda Tonet, editor cultura do Folha 8, apresentou-se na redacção do jornal feliz da vida e sorriso irradiante, a abrir alas. “Tisetas, tenho aqui uns textos que lhe vão interessar. Depois diga-me só o que pensa”, e passou-me umas folhas A4, que eu, na minha endémica distracção, recebi sem ter percebido grande coisa do que ele tinha dito. Meti o molho de folhas na minha pasta, disse, “Sim, sim” e esqueci. No dia seguinte, já muito a leste da mensagem do Nvunda, dei de chofre com as ditas A4, soltei uns sussurros de contrariedade por ter sido apanhado em flagrante delito de desleixo, e, depois duma breve luta entre a minha preguiça e o dever, este último, dessa vez lá acabou por vencer e comecei então a ler os tais textos interessantes. Li um, li dois, e já não sei aos quantos dei com um artigo intitulado “Proposta para uma nova democracia em Angola e em África”.

Nem acabei de ler, não pude, pois logo quis saber quem o tinha escrito. Não por patentear um tratamento de texto exemplar, havia por ali umas “coisinhas”, a fazer lembrar o conhecido refrão, “texto sem gralhas é como gaiola sem passarinhos”, mas a estrutura e a ideia mestra, sobretudo esta última, fez-me pensar, vejam só, numa das descobertas mais importantes do Homo Sapiens, o ovo de Colombo, ou, mais prosaicamente, naquela estória das bicicletas e do passador de bicicletas, que durante anos passava todos os dias pela alfândega de bicicleta com um caixote cheio de areia que muito intrigava os polícias, pois nunca conseguiram nele descobrir fosse o que fosse a não ser areia, quando, de facto, o tráfico do homenzinho era de bicicletas!

Por vezes a evidência que salta aos olhos, ninguém a consegue ver!
O texto em questão tinha esse condão de revelar um pensamento evidente perante um facto que está à vista de toda a gente, mas que ninguém ainda tinha abordado da maneira como o seu autor o fazia, ali, diante dos meus olhos. E o autor era o que hoje é um amigo precioso, o “Manhinho”, Domingos da Cruz.
O assunto tratado nesse artigo referia-se ao regime democrático em geral e ao direito de voto das populações rurais em particular, nessas terras esquecidas onde o analfabetismo atinge os píncaros dos noventa por cento. E o Domingos, questionava: «Neste contexto colocamos a seguinte questão. A África recebe as heranças do ocidente de forma livre ou será que ela lhe é imposta?(…) Por causa da imaturidade política e intelectual dos Africanos/Angolanos, eu penso que a participação nos escrutínios não deve depender da idade, mas sim do nível académico. Esta proposta exime-se de qualquer intenção exclusivista.»

O Domingos da Cruz: profundamente religioso (sempre frequentou escolas católicas), conservador no que toca à sexualidade, como ele próprio se situa, fiel à sua noiva (“amo-a profundamente, sou fiel e gostaria de manter esta postura com a ajuda de Deus e da Consciência”), espécimen em vias de desaparecimento, portanto, com 26 anos de idade, nascido a 28.01.84 em Malanje, hoje, senhor duma graduação em Filosofia e Pedagogia terminadas no ano passado, a fazer Mestrado no Brasil, em Ciências jurídicas, especialidade em Direitos Humanos, é já uma referência no complexo tabuleiro intelectual angolano. Pelo seu talento. Unicamente por causa disso.

O livro
O artigo a que me referi foi publicado no Folhinha em Maio de 2007, saiu na semana em que se comemora o dia de África. E desde essa data, o “Maninho” faz parte da minha família (intelectual), embora eu não seja religioso, nem puritano, nem conservador, nem tão-pouco senhor de umas estrutura mental tão elaborada como a sua, quero dizer, não tenho espírito científico. Ele tem.
Também acontece, naturalmente, eu não estar de acordo com certas ideias do Domingos da Cruz, mas a verdade é que admiro a sua maestria na defesa de alguns conceitos que, na minha opinião, são indefensáveis. Por exemplo, no que toca à infalibilidade do Papa, peço desculpa, vem-me de chofre ao pensamento a minha avó, infalivelmente morta, e, portanto, hoje infalível. Pois o Domingos conseguiu levar-me a ler de fio a pavio a sua defesa deste (pré) conceito, quando normalmente, em textos desse tipo, depois de lidas as primeiras palavras, procuro o ponto final final, anunciando passagem a um outro assunto.
Sexualidade. Também não estou de acordo. Gostos e cores não se discutem. Juntemos-lhes a sexualidade.
Em “A Igreja vendeu a alma ao Diabo”, “mo Maninho”, a meu ver, empurrou a “mosca” longe demais, sobretudo depois de já ter falado das “Prostitutas da igreja”. Mas, ao mesmo tempo, levantou uma “lebre”, que todos pensavam ser um “coelhinho” exemplar, familiar muito próximo de todas as virtudes: a Rádio Ecclesia.

Neste trabalho que prefacio, impõe-se-me pois dizer que no capítulo consagrado às tentações de piedosos curas, “derrepentemente” amicíssimos do partido maioritário, sente-se da parte do Domingos da Cruz uma indignação que é tanto maior quanto é grande a sua aderência aos princípios da doutrina católica. E que lemos então? Lemos primeiro um desfilar de relatos de desmandos, falcatruas, viradelas de casaca e ditos bajuladores, isto sem falar dos pecados de piedosos pedófilos e coisas assim. E, por trás dessas denúncias de factos, não de mujimbos, perfila-se uma imagem inédita da nossa Rádio Ecclesia. Entre outros desvios, ela lança o ostracismo ao Folha 8, o qual passou a ser interdito de acesso à divulgação dos seus temas semanais na Revista de Imprensa das matinas de sábado, sanção seguida do corte integral de alusões aos seus títulos de capa no programa do Justino Pinto de Andrade de segunda-feira às 8 horas e meia. Decisão infeliz. Pueril.
Esta emenda, creio eu, é muito pior do que o soneto, pois o que a Ecclesia estipula como sendo prática a seguir, e segue, é o que ela denuncia (va) como doença do partido no poder. Comenta nas entrelinhas, bloqueia o acesso a todas as suas tribunas ao denunciador de factos indesmentíveis e promove uma espécie de autismo que pouco tem a ver com a sua tradicional abertura. Passemos adiante.

À parte estes items, neste seu trabalho, Da Cruz aborda outras questões históricas e da actualidade, polémicas ou não, como o “maquiavelismo” de José Eduardo dos Santos, as incongruências da paz em Angola, os excessos de linguagem e das seitas religiosas (prostitutas da igreja), o conflito em Cabinda, o aborto, a última campanha eleitoral do MPLA, que ele compara com a conquista dos favores de uma moça por um homem mal intencionado que apenas deseja levá-la ao coito (!!), o panafricanismo, as makas, ou melhor, a “apreciação textual sobre crítica da crítica de Batsikama”, o seu encontro com Rafael Marques e outras matérias que lhe agitam a mente. Leiam.
António Setas

Angola: a ortodoxia da "real politike" de Maquiavel

Tudo o que fazemos, está muitas vezes profundamente impregnado de modelos – ético, político, religioso, desportivo, económico, etc. – é o mal é que, muitas vezes, não questionamos aquilo que seguimos como referência. Uma das consequências lógicas da adopção de um modelo sem questionar é: praticar as incoerências internas e externas do modelo (os erros, as insuficiências). Mas é importante referir que muitas vezes defendemos determinados modelos não pelo facto de serem certos ou eticamente aceitáveis, mas porque vão de acordo com os nossos objectivos, caprichos pessoais ou grupocêntricos, mesmo conhecendo profundamente as misérias éticas e desumanas que o referencial carrega!
Em muitas nações africanas, a prática da arte de governar, reduz-se a "estratégia de manutenção do poder", ou seja, nada é feito que não tenha como alvo a permanência no poder, independentemente dos estragos que vai causar. Neste exacto momento, o meu espírito recai para Angola, que é um "modelo acabado no exercício de manutenção do poder" por parte do grupo dominante desde que este país conseguiu a independência política.

Esta forma de entender o exercício político como luta selvática pelo poder, poder pelo poder desmedido, foi proposto por um politólogo e primeiro sistematizador da política na época moderna: Nicolau Maquiavel. A sua visão política foi apresentada por meio das obras "O Príncipe" (esta é a mais conhecida) e "Os Discursos".
Para que compreendamos se existe ou não correspondência entre a visão de Maquiavel e a realidade angolana, metodologicamente, convém apresentar o pensamento do nosso autor de maneira a que tenhamos um ângulo comparativo.
Diferente de Platão, Aristóteles e Thomas Morus, que idealizam a política, criaram princípios por meio dos quais o governante deve guiar o seu agir político, Maquiavel começa de baixo, ou seja, o agir político é circunstancial, não tem nada a ver com princípios e regras doutrinais preestabelecidas a seguir, mas depende da realidade prática, dai o famoso conceito de "Real Politike" que significa: a política tem a ver com a experiência diária. De acordo com esta concepção, se for necessário matar para atingir os meus intentos devo matar sem problemas, nem qualquer sino consciencial. Porém, a política de Maquiavel depende das circunstâncias reais da sociedade.

A política de Maquiavel é sustentada por uma visão antropológica pessimista (negativista) com consequências éticas graves. Esta visão antropológica, vê o homem como um ser de todo corrompido, mau, com ferocidade superior à dos animais e que por isso, não é capaz de fazer o bem nem ver bem o outro. Para Maquiavel, a alteridade e a ética da intersubjectividade não existem, não valem. Portanto, se o homem é de todo mau, então o governante deve ser terror, fazer-se temer para proteger o poder que nunca deve ser deixado a outrém.
Ele entende o poder como um privilégio dos fortes e quando conquistado deve mantê-lo até à morte. Para além da força coerciva do Estado, existe um outro instrumento para aplacar a ferocidade natural dos homens: a religião. (Não é por acaso que Marx afirmava erradamente que a religião é o “ópio do povo”.) Para Nicolau Maquiavel, a religião deve ser promovida pelo presidente (naquela altura era Rei), para poder acabar com a ferocidade natural dos homens, do povo que o pode contestar. Na visão de Maquiavel, a religião tem como fim último, a defesa dos interesses do Estado e do Presidente e não a humanização da sociedade e a relação do homem com uma Instância Superior.

Para ele, o rei deve ser mau, não se deve preocupar com o bem comum, os direitos humanos (claro que na altura não se falava do conceito de direitos humanos como contemporaneamente), isso não tem importância no exercício da arte de governar. Vejamos, se no pilar dos direitos, a educação é um direito fundamental, para Maquiavel este direito não deve ser promovido nunca, sob pena de pôr em perigo o poder, porque um povo não escolarizado é fácil de domar. De acordo com alguns estudiosos do pensamento político de Maquiavel, ele tem também uma concepção psicológica do sofrimento (estímulo-resposta) interessante, ao afirmar que "uma das formas de fazer com que o povo ame o Presidente é fazê-lo sofrer na carne, no osso e no espírito. Entrando neste ciclo, o povo aceita essa realidade como sendo natural e passa a amá-lo cada vez mais. Imaginem um povo analfabeto, que não tem capacidade sequer de comparar as diferentes realidades, daí que possa ficar no "eterno retorno ao sofrimento", como em Angola, o ano vai, outro vem, o sofrimento similar prevalece e os "preservativos eleitorais"(o povo – ver explicação mais adiante), não questionam, por exemplo, as faltas de água, luz, escola, emprego, etc..

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