terça-feira, 8 de março de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (2).


António Setas

A primeira coisa de que me lembro é do triciclo. Estava no quintal sentado no triciclo. Devia ter dois anos e meio, ou pouco mais, e a minha vida era andar de triciclo a dar voltas ao imbondeiro do quintal. Já não me lembro do que me passava pela cabeça, mas sei que quanto mais depressa desse a volta melhor seria para mim. Porquê não sei. Mas nesse dia - estou a ver-me - senti-me de repente incapaz de pedalar e gritei, «Mãe!!» Nada. Voltei a gritar, «Mãe!!» Aparece a minha mãe - estou a vê-la -, metade da minha mãe, tapada da cintura para baixo pelo murete da varanda, a inclinar-se para a frente, pronta a saltar para vir ao meu socorro e, a súbitas, sem pressa nenhuma de me socorrer porque já tinha descoberto o que se passava. E eu, «Cocó, Mãe! Cocó», «Outra vez, meu filho». Entrei numa choradeira convulsa, com lágrimas de grosso quilate, das que saltam para o ar e caem mais abaixo para deslizar muito grossas pelas maçãs do rosto. A minha mãe veio a correr para mim, pegou-me com cuidado, para não se sujar, e levou-me para casa.
Depois disso lembro-me das pernas grossas da Lúcia., uma senhora que de vez em quando vinha lavar a roupa da casa. Mas do que eu gostava mais era do sol. Metia-me debaixo da mesa da sala à espera que viesse a Lúcia na esperança de voltar a ver as pregas que ela tinha nas coxas, e entrava o sol. Os reposteiros nunca eram completamente corridos e as janelas estavam sempre abertas até ao aproximar do pôr-do-sol. Depois, a minha mãe ou a Lúcia, fechavam-nas por causa dos mosquitos. Mas até essa hora estavam sempre abertas e por elas entrava o sol com a brisa vinda do mar. Balançando ao sabor da brisa, os reposteiros dançavam, agora vai para a frente, logo vai para trás, e o sol, já instalado no centro da sala, ia brincando com as mangas e os abacates que estavam no cesto pousado na pequena banca da cozinha. Lançava uma agulha de luz, parecia hesitar, vai, não vai, e depois recuava e escondia-se. Quando a lufada de ar era mais forte agitava-se, metia-se muito nervoso pelos recantos da sala e eu ficava com a impressão de que o que a luz do sol queria era saber onde eu estava. Gostava muito desse sol a brincar, e das pernas da Lúcia...meu Deus!, lá em cima, no alto das coxas, tinham-me dito que havia uma cabeça em forma de triângulo, cheia de pêlos e com uma boca sem dentes, devia ser o Diabo! Era isso que eu queria ver, mas nunca consegui.
Depois… depois não há mais nada. Sim, havia as festas, os fins-de-semana, com muita gente a comer debaixo do imbondeiro, o tio Augusto, o único irmão do meu pai, com um hálito de vinho extraordinário, tão incomodativo para os humanos como para as moscas, que renunciavam aos ‘‘moscódromos’’ dos pitéus servidos à mesa enquanto ele estivesse por perto, havia o tio Mbala e a tia Londa, uma vez por outra os filhos do meu pai e da Chiquinha, do Bairro dos Imbondeiros, e a avó Júlia, mãe da minha mãe, muito empertigada, sempre a barafustar, lembrando a quem a quisesse ouvir a esmerada educação que dera à sua filha, enquanto lançava um olhar triste para mim e para os primos a correr atrás das primas. A repetir vezes sem conta, «Assim!?...Assim, não. Estas crianças nunca hão-de chegar a lado nenhum»

O meu pai não parava em casa. Ia e vinha, e quando vinha entrava e saía. Gostava de ir beber um copo à tasca do Guedes, onde se encontrava com os outros membros do grupo de Carnaval, o União Nzumba. Para ele, com trabalho duro no mar, uma mulher com três filhos no Bairro dos Imbondeiros e outra com um filho. No Prenda, era um problema bicudo harmonizar a vida à roda de tanta coisa importante. Isto sem falar do Marítimo F. C. e dos desafios de futebol, que às vezes era um festival de pancadaria. «Como dessa vez», contava o meu pai, «em que o Marito, o guarda redes, começou a fazer sinais de uanga, o árbitro a querer fugir, as pessoas a impedir, a polícia, compadres nossos, a chegar... grande maka! Só não deu mortos e feridos porque o árbitro lá reconsiderou e o jogo continuou». Era difícil. Difícil para ele, para mim não, brincava na rua com os kambas, punha-me de atalaia em casa à espera do sol e das pernas da Lúcia, e nos dias de sorte aparecia sempre alguém para me levar até aos Imbondeiros, ou à Xicala a casa da tia Londa. Praia e mar era do que eu mais gostava.

Por artes da minha mãe, influenciada pela mãe dela, a avó Júlia, entrei para a escola e fui um pouco afastado do mar. Pouco me lembro dos meus tempos de escola, a não ser da menina-dos-cinco-olhos, a palmatória, e da grande paixão que tive pela professora da primeira classe, a Dona Luisinha. Parecia uma boneca grande, gorduchinha no seu metro e quarenta e cinco de altura. Nunca me deu com a palmatória! E eu sonhava quase todos os dias com ela, todos os dias ia buscá-la à rua, até chorei quando passei para a segunda classe. Nos recreios...só me lembro das lutas e do futebol. Gostava, mas nas férias sim, era muito melhor, passava os dias na praia.
Quando fiz a quarta classe, aí uns três anos antes da Dipanda, fui passar as férias a casa da tia Londa. Até essa data, embora o que vou dizer pareça incrível, nunca me tinha dado conta de que o tio Mbala tinha um barco. Barcos conhecia eu, os do Bairro dos Imbondeiros, olhava para eles sem interesse. Na Xicala brincava e ia à praia do lado da baía. O tio Mbala saía às quatro da manhã, voltava à tarde, e eu ainda estava na praia. Quando ia para casa já ele tinha chegado. Também não lhe perguntava nada. Mas no dia em que cheguei à Xicala para passar um bom mês de praia, por acaso, o tio Mbala estava a chegar do mar.
«Rui! Rui!...Olha ali...’tás a ver? É o tio Mbala». A tia Londa, excitadíssima, puxava-me pelo braço e eu olhava para o mar. Via o sol a descer para a linha do horizonte, via as águas calmas e um barco à vela a deslizar por cima delas numa lentidão de caracol, a crescer para nós. Fiquei imóvel durante mais de meia hora, talvez uma, de vez em quando imitava a tia e acenava, e o homem do barco também acenava, enquanto o barco continuava a avançar e a crescer para nós, sem remos. Sem remos!!?... meu Deus, como era possível sem remos? E de repente lembrei-me, claro, já tinha visto muitos barcos à vela nos Imbondeiros e na ilha, mas nunca me dera ao trabalho de saber por que razão tinham uma vela e de facto não sabia que navegavam sem remos. Juro, olhava para eles sem os ver. Agora via. Só que, apesar de me desculpar tão estúpida ignorância, continuava a não perceber como é que aquele barco avançava sem remos. E todo o meu ser se concentrou na procura de uma explicação desse estranho...feitiço? Perguntei à tia e ela riu-se, «Feitiço!! Nada. É o vento, «O vento!?», «Sim, o vento. Um destes dias vais com ele e vais ver».

Imagem: otothing.com

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